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suposições singulares que não podemos senão citar: Pode-se tratar das dez semanas


familiares ao apocalipse judeu, as três primeiras correspondem ao tempo


que vai de Adão a Abraão, devendo ser subtraídas: restam ainda sete semanas de


anos, as seis primeiras correspondem a seis vezes sete que representam os três


grupos de catorze, e a sétima como sendo inaugurada pelo Cristo, com quem se


abre a sétima idade do mundo. Tais explicações dispensam qualquer comentário.


Os comentadores da Tradução Ecumênica da Bíblia - Novo Testamento


nos oferecem, eles também, algumas variações apologéticas, igualmente inesperadas:


Para as três vezes catorze de Mateus:


a) catorze poderia ser a soma numérica de três consoantes que formam


o nome de David em hebreu:


(D = 4, V = 6), de onde:


4+6+4=14.


b) três vezes catorze é igual seis vezes sete, e “Jesus vem no fi nal da sexta


semana da história santa que começa com Abraão.”


Para Lucas, esta interpretação dá 77 nomes de Adão a Jesus, o que permite


fazer reintervir a cifra sete como divisor de 77 (7 x 11 = 77). Ora, parece


que para Lucas, o número das variantes, suprimindo nomes ou anexando-os, é


tal que uma lista de 77 é absolutamente artifi cial, mas ela tem a vantagem de se


prestar a esse jogo de cifras.


As genealogias de Jesus, dos Evangelhos, são, talvez, o assunto que suscitou


da parte dos comentadores cristãos às acrobacias dialéticas mais características,


na justa medida da fantasia de Lucas e de Mateus.


CONTRADIÇÕES E DÚVIDAS DAS NARRAÇÕES


Cada um dos quatro Evangelhos comporta um número importante de


narrações dos acontecimentos que podem ser próprios a um só Evangelho,


ou bem, comuns a muitos ou a todos. Próprios a um só Evangelho, colocam,


às vezes, sérios problemas; assim, no caso em que o acontecimento tem uma


grande alçada, admira-se que apenas um Evangelista o comente: por exemplo,


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a ascensão de Jesus ao céu, no dia da Ressurreição. Por outro lado, numerosos


acontecimentos são narrados diferentemente e, às vezes, muito diferentemente


por dois ou vários evangelistas. Muito frequentemente, os cristãos fi cam chocados


com a existência dessas contradições - quando as descobrem - entre


os Evangelhos, porque lhes repetiram com tanta segurança que seus autores


tinham sido as testemunhas oculares dos fatos que eles relataram.


Nos capítulos precedentes, foram assinaladas algumas dessas incertezas e


contradições desconcertantes. Mas são, mui particularmente, os últimos acontecimentos


que marcaram a vida de Jesus e que se desenrolam com a Paixão, o


assunto das narrações divergentes e contraditórias.


AS NARRAÇÕES DA PAIXÃO


R. P. Roguet mesmo, nota que a Páscoa está situada diferentemente no


tempo em relação à última ceia de Jesus com os apóstolos nos Evangelhos


sinóticos e no quarto Evangelho. João coloca a ceia “antes da festa da Páscoa” e


os três outros no decorrer da Páscoa. Resultam, aliás, devido a essa divergência,


algumas dúvidas evidentes: tal episódio fi ca inconcebível em razão da situação


da Páscoa, assim fi xada em relação a ele. Quando se sabe que importância tinha


a Páscoa na liturgia judia e que importância teve essa ceia de adeus de Jesus a


seus discípulos, como imaginar que a sua recordação tenha sido até esse ponto


dissipada, da parte de um em relação a outro, na tradição transmitida mais tarde


pelos evangelistas?


De uma maneira geral, as narrações da Paixão diferem segundo os Evangelistas,


muito particularmente entre os três primeiros Evangelistas e João. A


última ceia de Jesus e a Paixão ocupam em grande lugar no Evangelho de João,


duas vezes mais que em Marcos e em Lucas; seu texto tem perto de uma vez e


meia o comprimento do texto de Mateus. João relata também um muito longo


discurso de Jesus a seus discípulos, cuja narração ocupa quatro capítulos (14 a


17) de seu Evangelho. Ao longo dessa conservação suprema, Jesus dá a seus discípulos,


que ele vai deixar, suas ultimas diretrizes e dá seu testamento espiritual.


Ora, não há vestígio disso nos outros Evangelistas. Ao contrário, Mateus, Lucas


e Marcos relatam a prece de Jesus em Getsêmane: João não fala dela.


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A AUSÊNCIA NO EVANGELHO DE JOÃO


DA NARRAÇÃO DA INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA


O fato mais importante que impressiona o leitor da Paixão, no Evangelho


de João, é que ele não faz nenhuma menção da instituição da Eucaristia, no


decorrer da última ceia de Jesus com os apóstolos.


Não há um cristão que não tenha tido conhecimento da iconografi a


da “Ceia”, onde Jesus está à mesa, no meio dos apóstolos, pela última vez. Os


maiores pintores representaram essa reunião última com João ao lado de Jesus;


o João que se costuma considerar como o autor do Evangelho, que leva o seu


nome.


Por mais espantoso que isto possa parecer a muitos, o apóstolo João


não pode ser considerado pela maior parte dos especialistas como o autor do


quarto Evangelho e este não menciona a instituição da Eucaristia. Ora, esta


consagração do pão e o vinho transformados em corpo e sangue de Jesus é


alto litúrgico essencial do cristianismo. Os três outros evangelistas falam dela,


ainda que em termos diferentes como se mencionou mais acima. João não diz


uma palavra a respeito. As quatro narrações dos Evangelistas têm dois únicos


pontos comuns: o anúncio da negação de Pedro e da traição de um dos apóstolos


(Judas não é designado nominalmente a não ser em Mateus e em João).


Só a narração de João comenta a lavagem dos pés de seus discípulos por Jesus,


no início da refeição.


Como se explica a lacuna do Evangelho de João?


Se raciocinarmos objetivamente, o que vem imediatamente ao espírito,


supondo que a narração dos três primeiros Evangelistas seja exata, é a hipótese


da perda de uma passagem do Evangelho de João que relatava o mesmo episódio.


Mas não é o que chamou a atenção dos comentadores cristãos.


Examinemos algumas tomadas de posição.


No seu Pequeno Dicionário da Bíblia, A. Tricot escreve o artigo “Ceia”.


“última refeição que Jesus tomou com os Doze e durante a qual ele instituiu


a Eucaristia. Nós tempos a sua narração nos Evangelhos sinóticos” (referências


de Mateus, Marcos e Lucas) “...e o quarto Evangelho nos dá alguns detalhes


complementares” (referências de João).


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No artigo “Eucaristia”, o mesmo autor escreve: “A instituição da Eucaristia


é brevemente narrada nos três primeiros Evangelhos: era, na catequese


apostólica, um ponto da maior importância. São João deu um complemento


indispensável a essas narrações sucintas, relatando o discurso de Jesus sobre o


pão da vida (6:32-58)”. O comentador não menciona, por consequência, que


João não relatou a instituição da Eucaristia por Jesus. O autor fala de “detalhes


complementares”, mas não são alguns detalhes complementares da instituição


da Eucaristia (trata-se, essencialmente. de fato, da cerimônia do lava-pés dos


apóstolos). Quanto “ao pão da vida” do qual fala o comentador, é a evocação


por Jesus - fora da “Ceia” - do donativo cotidiano por Deus do maná no deserto,


no tempo do êxodo dos judeus dirigidos por Moisés, evocação que João é


o único dos Evangelistas a relatar. Certamente, na passagem que segue de seu


Evangelho, João menciona a alusão feita à Eucaristia por Jesus sob a forma de


uma digressão a propósito do pão, mas nenhum outro Evangelista fala desse


episódio.


Assim, pode-se fi car perplexo, ao mesmo tempo, com o mutismo de


João sobre que os três outros Evangelistas relatam, e do mutismo destes sobre


o que Jesus teria, segundo João, anunciado.


Os comentadores da Tradução Ecumênica da Bíblia, Novo Testamento,


reconhecem esta grande lacuna do Evangelho de João, mas encontram a seguinte


explicação para a falha da narração da instituição da Eucaristia: “De um modo


geral, João não atribui muito interesse às tradições e às instituições do antigo


Israel, o que, pode ser o tenha desviado de indicar o enraizamento da Eucaristia


na liturgia pascal”. Com nos fazer crer que seja uma falta de interesse pela liturgia


pascal judia, que levou João a não falar da instituição do ato fundamental da


liturgia da religião nova?


O problema embaraça tanto os intérpretes, que alguns teólogos se esforçam


em pesquisar a prefi guração ou equivalentes da Eucaristia nos episódios


da vida de Jesus, contados por João. Assim, para O. Culmann, em seu livro O


Novo Testamento, o milagre de Canaã e a multiplicação dos pães prefi guram o


sacramento da Santa Ceia (a “Eucaristia”). Lembremo-nos de que se tratava, em


Canaã, da mudança da água em vinho, havendo falta dessa bebida a um casamento


(primeiro milagre de Jesus que, dentre os evangelistas, João é o único a


evocar em 2:1-12). Quanto à multiplicação dos pães (João 6:1-13), ela teve por fi m


alimentar 5.000 pessoas com 5 pães multiplicados pelo milagre. João não fez,


por ocasião da narração desses acontecimentos, nenhum comentário particular


e a aproximação é puramente imaginada pelo exegeta. Não se distingue a razão


da relação que ele estabelece, assim como causa muita perplexidade, quando


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o mesmo autor acha que a cura de um paralítico e a do Cego de nascimento


“anunciam o batismo», e que “água e o Sangue, saindo do lado de Jesus depois


de sua morte reúnem em um mesmo fato” uma referência ao batismo e à Eucaristia.


Numa outra aproximação do mesmo intérprete a propósito da Eucaristia,


R.P. Roguet cita em seu livro Iniciação ao Evangelho: Alguns teólogos


bíblicos como Oscar Culmann, escreve ele, veem na narração do lava-pés, antes


da ceia, um equivalente simbólico da instituição Eucarística.


Mal se discerne a fundamentação de todas essas aproximações imaginadas


pelos comentadores, para fazer aceitar mais facilmente a lacuna mais


desconcertante do Evangelho de João.


O APARECIMENTO DE JESUS RESSUSCIATADO


Um exemplo maior da fantasia na narração já foi evocada a propósito do


Evangelho de Mateus, com sua descrição dos fenômenos anormais que teriam


acompanhado a morte de Jesus. Os acontecimentos que seguem a ressurreição


vão fornecer matéria a algumas narrações contraditórias, e mesmo extravagantes,


da parte de todos os evangelistas.


R.P. Roguet, em sua Iniciaçõo ao Evangelho, nos dá (p. 182) alguns exemplos


da confusão, da desordem, e da contradição que reinam nos escritos.


A lista das mulheres unidas ao túmulo não é todavia a mesma nos três


sinóticos. Em João, não há além de uma: Maria de Magdalena. Mas ela fala no


plural como se ela tivesse companheiras: “Nós não sabemos onde eles o colocaram”.


Em Mateus, o anjo anuncia às mulheres que elas verão Jesus na Galileia.


Ora, logo depois, Jesus vem a seu encontro ao lado do túmulo. Lucas deve ter


sentido essa complicação e retoca um pouco o seu depoimento. O anjo diz:


Lembrai-vos como ele vos falou, estando ainda em Galileia...” “E, de fato, Lucas


não menciona senão três aparições...” - “João coloca duas aparições, com 8 dias


de intervalo, no cenário de Jerusalém; depois, a terceira vez, junto ao lago, portanto


na Galileia. Mateus tem somente uma aparição na Galileia”. O comenta106





dor exclui deste exame o fi nal do Evangelho de Marcos que fala das aparições,


porque pensa que ele é “sem duvida de urna outra mão”.


Todos esses fatos estão em contradição com a menção das aparições de


Jesus, contida na primeira epístola de Paulo aos Coríntios (15:5-7) a mais de quinhentas


pessoas simultaneamente, a Jacó, a todos os apóstolos, sem esquecer o


próprio Paulo. Causa espécie, após isso, quando RP. Roguet estigmatiza, no mesmo


livro, as “fantasmagorias grandiloquentes e ingênuas de certos apócrifos” a


propósito da ressurreição. Com efeito, esses termos não convém perfeitamente


a Mateus e ao próprio Paulo, que está em completa contradição com os outros


evangelistas a propósito das aparições de Jesus ressuscitado?


Além dessas, há contradição entre a narração do Ato dos Apóstolos,


obra do Evangelista Lucas, sobre a aparição de Jesus a Paulo e o que Paulo nos


informa sucintamente. Isso levou R.P. Kannengiesser a sublinhar no seu livro Fé


na Ressurreição, Ressureição da Fé (1974), que Paulo, “único testemunho ocular


da ressurreição de Cristo, cuja voz chega diretamente até nós através de seus


escritos41não fala jamais de seu encontro pessoal com o Ressuscitado - “... além


de três alusões extremamente discretas...” - “Melhor, ele se proíbe de descrevê-


-la”.


A contradição entre Paulo, único testemunho ocular, porém, suspeito, e


os Evangelhos é patente.


O. Culmann, em seu livro O Novo Testamento anota as contradições


entre Lucas e Mateus; o primeiro, situando suas aparições de Jesus na Judéia, e,


o segundo, na Galiléia.


Quanto à contradição Lucas-João, lembremos que o episódio contado


por João (21:1-4) sobre a aparição de Jesus ressuscitado aos pescadores, à beira


do lado de Tiberíades, os quais vão, em seguida, pegar todos peixes que não


poderão mais carregar, não é outra coisa senão a repetição do episódio da pesca


miraculosa, no mesmo lugar, quando Jesus ainda estava vivo, orientado também


por Lucas (5:1-11).


R.P. Roguet nos assegura, em seu livro, a propósito dessas aparições,


que «esse (desconexo), essa fl uidez, essa desordem lhe dá confi ança», porque


somente esses fatores provam que os evangelistas não estão combinados; caso


contrário eles não teriam deixado de pôr em uníssonos os seus violinos. O


41 - A “Nenhum outro autor do Novo Testamento pode se atribuir semelhante qualidade” faz ele


observar. É di􀄰 cil imaginar como alguns poderiam fazê-lo?


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arrazoado é singular. Com efeito, todos puderam também relatar com total


sinceridade as tradições completamente remanseadas - a seu bel-prazer - de


suas comunidades: como não ser levado a levantar esta hipótese perante tantas


contradições e improváveis na exposição dos acontecimentos?


A ASCENSÃO DE JESUS


As contradições prolongam-se até o fi m das narrações, pois nem João e


nem Mateus mencionam a Ascensão de Jesus. Somente Marcos e Lucas referem-


-se a ela.


Para Marcos (16.19’), Jesus foi “elevado ao céu e está sentado à direita


de Deus”, sem nenhuma precisão de data em relação à sua ressurreição; mas é


preciso notar que o fi nal do Evangelho de Marcos, que contém essa frase, não


é autêntico, é o texto “postiço” para R. P. Roguet, embora, para a lgreja, ele seja


canônico!


Resta Lucas, o único que evoca em um texto não discutido o episódio


da Ascensão (24:51): “Jesus se separa deles42 e foi elevado ao céu”. O acontecimento


está colocado pelo evangelista no fi m da narração da ressurreição e do


aparecimento aos onze: os detalhes da narração evangélica dão a entender que


foi no dia da ressurreição que a ascensão ocorreu. Mas nos Atos dos Apóstolos,


Lucas - do qual todo mundo pensa que ele é o autor descreve (1:2-3), as aparições


de Jesus aos apóstolos entre a Paixão e a ascensão, nestes termos: “Eles


tiveram mais de uma prova quando, durante quarenta dias, ele se fez ver por


eles e lhes falou do reino de Deus”.


Esta passagem dos Atos dos Apóstolos é a origem e fi xação da festa cristã da


ascensão, quarenta dias depois da Páscoa, em que é festejada a Ressurreição. A


data assim fi xada choca-se com b Evangelho de Lucas; nenhum texto evangélico


a justifi ca em nenhum lugar. Quando toma conhecimento dessa situação, o cristo


fi ca desconcertado, pois a contradição é evidente. A Tradição Ecumênica da


Bíblia, Novo Testamento, reconhece, entretanto, os fatos, mas não refl ete sobre


a contradição, contendo-se em mencionar o interesse que possam ter esses


quarenta dias pura a missão de Jesus.


42 - Trata-se dos onze apóstolos. Judas estava morto.


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Os comentadores, que querem tudo explicar e conciliar o inconciliável,


nos oferecem a esse respeito singulares interpretações.


Assim, a sinopse dos quatro Evangelhos editada em 1972 pela Escola


Bíblica de Jerusalém contém (vol. 2, p. 451) comentários muito curiosos.


A própria palavra ascensão é criticada nestes termos: “Com efeito, não


houve ascensão no sentido físico propriamente dito, porque Deus não está


“mais no alto que em baixo”... (sic)


Apanha-se mal o sentido desta observação, pois se pergunta como Lucas


teria podido se expressar de outra maneira.


Ademais, o autor do comentário vê um “artifício literário” no fato de


que, “nos Atos, está dito que a ascensão teve lugar quarenta dias após a ressurreição”,


tal “artifício” é “destinado a sublinhar que o período das aparições de


Jesus sobre a Terra chega ao fi m”. Mas acrescenta ele, no fato que no Evangelho


de Lucas, “o acontecimento se coloca à tarde do domingo de Páscoa, pois que


o evangelista não põe nenhum intervalo entre os diversos episódios que ele


comenta, depois da descoberta do túmulo vazio na manhã da ressureição...”, “...


não é também aí um artifício literário, destinado a deixar um certo lapso de


tempo para as aparições do ressuscitado?” (sic).


O constrangimento que resulta de interpretações dessa natureza é ainda


mais patenteado no livro de R.P. Roguet, que distingue... duas ascensões!


“Enquanto a ascensão, do ponto de vista de Jesus, coincide com a Ressurreição,


ela não ocorreu sob o ponto de vista dos discípulos, a não ser quando


Jesus cessa completamente de se manifestar a eles, para que o Espírito lhes


seja enviado, e comece o tempo da Igreja”.


Ao leitor que não seria capaz de perceber a sutileza teológica de sua


argumentação, que não tem a mínima base nas escrituras, o autor endereça um


alerta geral, modelo de verborragia apologética: “Aqui, como em muitos casos


semelhantes, o problema não parece insolúvel, a não ser que se tome ao pé da


letra, materialmente, as afi rmações da Escritura, esquecendo-se sua signifi cação


religiosa. Não se trata de dissolver a realidade dos fatos num simbolismo inconsistente,


mas de procurar a intensão teológica daqueles que nos revelam


mistérios, fornecendo-nos fatos sensíveis, signos apropriados ao enraizamento


carnal de nosso espírito”.


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AS ÚLTMAS PALAVRAS DE JESUS


O PARACLETO DO EVANGELHO DE JOÃO


João é o único evangelista a relatar, no fi m da última refeição de Jesus e


antes de sua prisão, o episodio das derradeiras entrevistas com os apóstolos, o


qual se completa com discurso bem longo: quatro capítulos do Evangelho de


João (14 a 17) são consagrados a essa narração, da qual não se encontra nenhuma


citação nos outros evangelhos. E, no entanto, esses capítulos de João tratam


de questões primordiais, de perspectivas de futuro de importância fundamental,


expostas com toda a grandeza e a solenidade, que caracterizam essa cena das


despedidas do Mestre aos seus discípulos.


Como podemos explicar que esteja inteiramente ausente em Mateus,


Marcos e Lucas a narração e despedidas tão comoventes que contêm o testamento


espiritual de Jesus? Pode-se questionar: o texto existiu inicialmente nos


três primeiros evangelistas? Teria sido suprimido logo a seguir? E por quê? Digamos,


de passagem que nenhuma resposta pode ser fornecida; o mistério fi ca


insolúvel sobre essa enorme lacuna, na narração dos três primeiros evangelistas.


O que rege esta narração é - isto se concebe num encontro supremo - a


perspectiva do futuro dos homens, evocada por Jesus, e o cuidado do Mestre


em dirigir aos seus discípulos, e através deles à humanidade inteira, suas recomendações


e seus mandamentos, e em defi nir qual será, em defi nitivo, o guia


que os homens deverão seguir depois do seu desaparecimento. O texto do


Evangelho de João, e somente ele designa, explicita o nome grego Paracletos,


tornado Paraclet em francês. Eis aqui, segundo a Tradução Ecumênica da Bíblia,


Novo Testamento, as passagens essenciais: “Se vós me amais, vós vos aplicareis


a observar meus mandamentos; de minha parte eu rogarei ao Pai: ele nos dará


um outro paracleto (14:15-16)”.


O que signifi ca Paracleto? O texto que possuímos atualmente do Evangelho


de João explica o seu sentido, nestes termos:


“O Paracleto, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, vos


comunicará todas as coisas, e vos fará relembrar de tudo o que eu vos tenho


dito” (14:20).


“Ele dará (também) testemunho de mim” (15-16).


“Para vós convém que eu me vá; porque, se eu não partir, o Paracleto


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não virá a vós; se ao contrário, eu partir, eu vô-lo enviarei. E ele, por sua vinda,


convencerá o mundo a respeito do pecado, da justiça e do julgamento...” (16:7-


8).


“Quando vier o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda verdade; porque


não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e vos anunciará


as coisas que hão de vir. Ele me glorifi cará...” (16:13-14).


(É de se notar que as passagens não citadas aqui dos Capítulos 14-17


do Evangelho de João não modifi cam de modo algum o sentido geral à essas


citações).


Submetendo-o a uma leitura rápida, o texto francos que estabelece a


identidade ‹Ca palavra grega Paracleto com o Espírito Santo não merece, mais


frequentemente, atenção. Além disso, os subtítulos do texto, geralmente empregado


nas traduções e nos termos dos comentários apresentados nas obras


de vulgarização, orientam o leitor para o sentido que a ortodoxia consagrada


quer dar a essas passagens. Qualquer dúvida ou difi culdade de compreensão, ali


estaria, para oferecer quaisquer esclarecimentos, o Petit Dicionnaire du Noveau


Testament de A. Tricot. Da autoria desse comentador, no artigo “Paracleto”,


pode-se ler, efetivamente. o seguinte:


“Este nome ou esse título, transcrito do grego em francês. não é empregado


no Novo Testamento senão por São João: Quatro vezes, quando ele


relata o discurso de Jesus depois da Ceia43” (14:16 e 26; 15:26; 16:7) e, uma vez, na


sua primeira epistola (2:1). No Evangelho Junino, a palavra se aplica ao Espírito


Santo; na Epístola, ao Cristo. “Paracleto” era um termo comumente empregado


pelos judeus helenistas do século I no sentido de intercessor, de defensor. (...)


O Espírito, anuncia Jesus, será enviado pelo Pai e pelo Filho e terá por missão


específi ca substituir o Filho no papel de salvação, exercido por este durante sua


vida mortal em benefício de seus discípulos. O espírito intervirá e agirá como


substituto do Cristo, como Paracleto ou intercessor todo poderoso.”


Este comentário faz, portanto, do Espírito Santo, o guia último dos


homens depois da desaparição de Jesus. Estaria ele de acordo com o texto de


João?


A questão deve ser colocada porque, a priori, parece- curioso-que se


possa atribuir ao Espírito Santo o último parágrafo citado mais adiante: “Ele


43 - Em realidade, é exatamente no decorrer da “Ceia” que, para João, Jesus pronunciou o


longo cujo assunto é o Paracleto, discurso não relatado pelos outros evangelistas.


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não falará por si mesmo, mas ele dirá o que ouvir e ele vos comunicará tudo o


que de vir”. Parece inconcebível que se ouve dar ao Espírito Santo os poderes


de falar e dizer o que ele ouve... Até onde vai meu conhecimento, esta questão


que a lógica manda por em destaque, não é geralmente objeto de comentários.


Para ter uma ideia exata do problema, é necessário repousar-se ao texto


grego de base. Isso é muito importante, porque se atribui ao evangelista João


tê-lo escrito em grego e não em outra língua. Ó texto grego consultado foi o


Novum Testamentum Graecer44.


Toda crítica textual séria começa pela pesquisa das variantes. Aqui parece


que, no conjunto dos manuscritos comuns do Evangelho de João, não existem


outras variantes susceptíveis de alterar o sentido da frase senão aquela da passagem


14: 26 da famosa versão em língua siríaca chamada Palimpsesto (Escrito no


século IV ou V e descoberto no monte Sinai, em 1812, por Agnés S. Lewis, esse


manuscrito é assim chamado porque o texto inicial tinha sido recoberto por


um outro texto que, apagado, fez aparecer o primeiro.). Nela não se menciona o


Espírito Santo, mas simplesmente o Espírito. O escriba fez uma simples omissão,


ou, não, colocado perante um texto a recopiar, o qual pretendia falar ouvir e


falar o Espírito Santo, não ousou escrever o que lhe pareceu um absurdo? Além


dessa observação, não há jeito para insistir sobre outras variantes, a não ser


nas variantes gramaticais que não mudam em nada o sentido geral. O essencial


é que o que aqui está, posto sobre a signifi cação precisa dos verbos “ouvir” e


“falar” valha para todos os manuscritos do Evangelho de João, esse é o caso.


O verbo “falar” da tradução portuguesa é o verbo grego “laleô” que teve


o sentido geral de emitir os sons e o sentido particular de falar. Este verbo


reaparece, muito frequentemente, no texto grego dos Evangelhos para designar


uma declaração solene de Jesus no curso de sua predicação. Parece, portanto,


que a comunicação aos homens, de que se tem conta aí, não consiste de modo


algum em uma inspiração que seria o ativo do Espírito Santo, mas que ela tem


caráter material evidente, em razão da noção da emissão de sua ligação à palavra


grega que a defi niu.


Os dois verbos gregos AKOUÔ e LALEÔ defi nem, portanto, as ações


concretas que não podem ter relação senão a um ser dotado de um órgão de


audição e de um órgão da palavra. Aplicados, por consequência, ao Espírito


Santo, não é possível.


44 - Nestlé et Aland. 1971.


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Assim, tal como nos é dado pelos manuscritos gregos, o texto dessa passagem


do Evangelho de João é perfeitamente incompreensível se aceito, em sua


íntegra, com as palavras Espírito Santo da frase: (14:26): “O Paracleto, o Espírito


Santo que o Pai enviará em seu nome...” etc.; única frase que, no Evangelho de


João, estabelece identidade entre Paracleto e Espírito Santo.


Mas se se suprimir “Espírito Santo” (to pneuma to agion) dessa frase,


todo o texto de João apresenta uma signifi cação extremamente clara. Ela é, aliás,


concretizada por outro texto evangélico, a primeira epístola onde João utiliza


a mesma palavra Paracleto para designar simplesmente Jesus, enquanto intercessor


ao lado de Deus45. E, quando Jesus diz, segundo João (14:16): “Eu rogarei


ao Pai: Ele vos enviará um outro Paracleto”, ele quer dizer que Ele enviará aos


homens um “outro” intercessor como ele mesmo foi, ao lado de Deus, em seu


favor, quando de sua vida terrestre.”


É-se, então, conduzido, com toda a lógica, a ver no Paracleto de João um


ser humano como Jesus, dotado de faculdades de audição e de palavra, faculdades


que o texto grego de João implica de modo formal. Jesus anuncia, pois,


que Deus enviará mais tarde a esta terra, um ser humano para aqui ter o papel


defi nido por João que é, seja dito em uma palavra, o de um profeta escutando a


voz de Deus e repetindo aos homens sua mensagem. Tal é a interpretação lógica


do texto de João, se dermos às palavras o seu sentido real.


A presença de “Espírito Santo”, no texto que nós possuímos, hoje, poderia,


perfeitamente, decorrer de um acréscimo posterior, completamente voluntário,


destinado a modifi car o sentido primitivo duma passagem que, anunciando


a vinda do profeta depois de Jesus, estava em contradição com os ensinamentos


das Igrejas cristãs nascentes, querendo que Jesus fosse o último dos Profetas.


CONCLUSÕES


Os fatos que foram relacionados aqui e os comentários citados de vários


exegetas cristãos muito eminentes refutaram as afi rmações da ortodoxia, tendo,


como apoio, a linha adotada pelo último concílio, concernente à historicidade


absoluta dos Evangelhos que teriam fi elmente transmitido o que Jesus realmente


fez e ensinou.


45 - Muitas das tradições e comentários, sobretudo, an􀆟 gos, dos Evangelhos, traduzem a


palavra por consolador, o que é um erro completo.


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Os argumentos que foram apresentados são de várias ordens. Em primeiro


lugar, as próprias citações dos Evangelhos, estabelecendo algumas contradições


fl agrantes. Não se pode crer na existência de dois fatos que se contradizem.


Não podem ser aceitas certas improváveis ou algumas informações que


não condizem com os dados perfeitamente estabelecidos pelos conhecimentos


modernos. As duas genealogias de Jesus que os Evangelhos apresentam e o que


eles implicam de contra verdade são, a esse respeito, perfeitamente demonstrativas.


Muitos cristãos ignoram essas contradições, improváveis ou incompatibilidades


com a ciência moderna e fi cam estupefatos quando as descobrem,


infl uenciados como estavam pela leitura dos comentários a oferecer sutis explicações


destinadas a tranquilizá-los, com apoio no lirismo apologético. Alguns


exemplos bem característicos, foram fornecidos sobre ã habilidade de certos


exegetas em camufl ar o que eles chamam pudicamente de “difi culdades”. Muito


raras são, com efeito, as passagens dos Evangelhos reconhecidas como inautênticas,


quando a Igreja as declarou ofi cialmente canônicas.


Os trabalhos da crítica textual moderna colocaram em evidência os dados


que, segundo R.P. Kannengiesser, constituem uma “revolução dos métodos


exegéticos” e levam a “não mais tomar ao pé da letra” os fatos comentados a


respeito de Jesus pelos Evangelhos “escritos de circunstâncias” ou “de combate”.


Os conhecimentos modernos, tendo esclarecido a história do judeu-


-cristianismo e as rivalidades entre a comunidade, explicam a existência de fatos


que desconcertam os leitores de nossa época. A concepção de evangelistas


testemunhas oculares não é mais defensável, mas ela é, ainda em nossos dias, a


de numerosos cristãos. Os trabalhos da Escola Bíblica de Jerusalém (R.P. Benoit


e R.P. Boismard) demonstram muitíssimo bem que os Evangelhos foram escritos,


revistos e corrigidos várias vezes.


Também o leitor do Evangelho é prevenido por eles de que “deve renunciar,


em mais de um caso, a ouvir a voz direta de Jesus”.


O caráter histórico dos Evangelhos não é discutível, mas esses documentos,


acima de tudo, através das narrações concernentes a Jesus, sobre a mentalidade


dos autores, porta-vozes da tradição das comunidades cristãs primitivas


às quais eles pertenceram e, em particular, sobre as lutas entre judeu-cristãos e


Paulo, nos informam: os trabalhos do cardeal Daniélon pesam com autoridade


sobre esses pontos.


Então, como fi car perplexo perante a deturpação de certos aconteci114





mentos da vida de Jesus por evangelistas, que tinham por fi m defender um


ponto de vista pessoal, como fi car espantado com a omissão de certos acontecimentos,


como fi car espantado com o aspecto romanceado da descrição de


alguns outros?


Somos levados a comparar os Evangelhos às nossas canções de gestas da


literatura medieval. Sugestiva é a comparação que se pode fazer com a canção


de Rolando, a mais conhecida de todas, que relata, sob um aspecto romanceado,


um acontecimento real. Sabemos que ela relata um episódio autêntico: uma


emboscada que aniquilou a retaguarda de Carlos Magno, comandada por Rolando


na garganta de Roncevales. Este episódio, de importância secundária, teria


acontecido, segundo a crônica histórica (Eginhard), a l5 de outubro de 778; foi


ampliado às dimensões de um grandessíssimo feito de armas, de um combate


de guerra santa. A narração é fantasista, mas esta fantasia não pode eclipsar a


realidade de uma das lutas que Carlos Magno teve de empreender, para garantir


suas fronteiras contra as tentativas de penetração dos povos vizinhos: aí está o


que há de autêntico; o modo épico da narração não o desfaz.


Para os Evangelhos, dá-se o mesmo: as fantasmagorias de Mateus, as contradições


fl agrantes entre os Evangelhos, as improváveis, as incompatibilidades


com os dados da ciência moderna, as alterações sucessivas dos textos fazem


com que os Evangelhos contenham alguns capítulos e algumas passagens dependentes


exclusivamente da imaginação humana. Mas essas falhas não levam a


pôr em dúvida a existência da missão de Jesus: as dúvidas pairam somente sobre


a sua realização.


115





O ALCORÃO E A CIÊNCIA MODERNA


INTRODUÇÃO


A priori, uma tal associação entre o Alcorão e a ciência surpreende; tanto


mais, que é de harmonia e não de discordância que ela vai tratar. Confrontar


um livro religioso e considerações profanas que a ciência chama, não é, aos


olhos de muitos, coisa paradoxal em nossa época? Com efeito, hoje, com naturalmente


algumas exceções, os cientistas, imbuídos, em sua maioria, por teorias


materialistas, não têm, muito frequentemente, senão indiferença ou desprezo pelas


questões religiosas, consideradas por eles, comumente, como fundamentadas


em lendas. Além do mais, em nossos países ocidentais, quando se fala de ciência


e de religião, o díptico religioso engloba, sem problemas, Judaísmo e Cristianismo,


mas não se imagina inserir aí no Islam. Emitiram, aliás, sobre ele, tantos


julgamentos inexatos, fundados em concepções errôneas, que é, em nossos dias,


muito difícil fazer-se uma ideia exata do que ele é em realidade.


Como preludio a toda confrontação entre Revelação Islâmica e Ciência,


parece absolutamente necessário dar um resumo de uma religião tão mal conhecida


em nosso país.


Os julgamentos completamente errôneos que se emitiram sobre a Revelação


no Ocidente são o resultado tanto da ignorância, quanto do denegrimento


sistemático. Porém, as mais graves de todas as falsidades difundidas são


as falsidades concernentes aos fatos, pois, se alguns erros de apreciação são


perdoáveis, uma apresentação dos fatos contrária à verdade não o é. É consternador


ler nas obras mais sérias, vindas de autores a priori competentes, contra


verdades fl agrantes. Eis aqui um exemplo: na Encíclopédia Universalis, Vol. 6,


artigo “Evangelhos”, uma alusão é feita às diferenças com o Alcorão, e o autor


escreve: “Os evangelistas não pretendem [...], como o Alcorão, transmitir uma


autobiografi a miraculosamente ditada por Deus ao Profeta...” Ora, o Alcorão


nada tem a ver com uma autobiografi a: ele é


uma predicação; o auxílio da pior das traduções poderia revelá-la ao autor. Essa


afi rmação é tão contrária à realidade como a que defi nisse um Evangelho como


a narração da vida de um evangelista. O responsável por essa falsidade sobre o


Alcorão é um professor da Faculdade de Teologia, Jesuíta de Lyon! A emissão de


contra verdades dessa ordem contribui para dar uma imagem falsa do Alcorão


e do Islam.


116





Há, entretanto, algumas razões para esperar, pois, hoje, as religiões não estão


mais, como outrora, voltadas sobre si mesmas e muitas procuram uma compreensão


mútua. Como não se impressionar com o fato de que, nos escalões


mais elevados da hierarquia, cristãos católicos dedicam-se a estabelecer contato


com os muçulmanos, procuram combater a incompreensão, e se esforçam para


reformar as representações inexatas difundidas sobre o Islam?


Eu evoquei na Introdução deste livro, a considerável mudança que se


produziu nos últimos anos e citei um documento emanado do Secretário do


Vaticano para os não cristãos, intitulado “Orientações Para Um Dialogo Entre


Cristãos e Muçulmanos”, documento muito signifi cativo das posições novas


adotadas perante o Islam. Elas exigem - leiamos na terceira edição (1970) desse


estudo - “uma revisão de nossa posição em relação a ele e uma crítica de


nossos preconceitos”... “nós devemos nos preocupar, primeiro, em mudar progressivamente


a mentalidade de nossos irmãos cristãos. É o que importa acima


de tudo”... É preciso abandonar “a imagem envelhecida herdada do passado


ou desfi gurada por preconceitos e por calúnias”... “reconhecer as injustiças


das quais o Ocidente cristão tornou culpado, em relação aos muçulmanos”.46.


O documento do Vaticano, que tem por volta de cento e cinquenta páginas,


desenvolve, assim, a refutações das visões clássicas que os cristãos tiveram sobre


o Islam e expõe o que ele é, em realidade.


Sob o título “Liberar-nos de Nossos preconceitos Mais Notórios”, os


autores deste documento endereçam este convite aos cristãos: “Aí, também,


temos que nos entregar a uma profunda purifi cação de nossas mentalidades.


Nós pensamos em particular em certos julgamentos de valor que lançamos


muito frequentemente e levianamente sobre o Islam. Parece capital não cultivar


de modo algum, no íntimo de nosso coração, essas visões muito superfi ciais,


quando não arbitrárias, onde o muçulmano sincero não se reconhece”.


Uma dessas visões arbitrárias, de maior ordem, é justamente aquela que


conduz sistematicamente, em nossa língua, a designar o Deus dos muçulmanos


com o nome de Allah, como se os muçulmanos acreditassem em um Deus que


46 - Toda forma de hos􀆟 lidade voltada para o Islam, mesmo vinda de adversários declarados


do cris􀆟 anismo, recebeu, em uma certa época, aprovação calorosa dos mais altos


signatários da Igreja Católica É assim, que o Papa Benedito XIV, conhecido por ser o maior


pon􀆡 fi ce do século XVIII, não hesita em enviar a benção a Voltaire. Ele queria agradecer-


-lhe por ter dedicado sua tragédia “Muhammad ou Fana􀆟 smo” (1741), grosseira sá􀆟 ra,


não se importando de que um negador de pena hábil e de má fé possa escrever sobre não


importa qual assunto. A peça recebeu, após apresentações di􀄰 ceis, sufi ciente pres􀆡 gio


para ser inscrita no repertório da Comédie Française.


117





não fosse o dos cristãos! Al-Lâh, signifi ca, em árabe, a Divindade; trata-se de uma


divindade única, o que implica que uma transcrição francesa correta não pode


dar o sentido exato da palavra a não ser com a ajuda do vocábulo “Deus”47. Para


o muçulmano, Al-Lâh, não é outro senão o Deus de Moisés e de Jesus.


O Documento do Secretariado do Vaticano para os não cristãos insiste


nesse dado fundamental, nestes termos:


“Parece inútil sustentar com alguns ocidentais que Allah não é verdadeiramente


Deus! Os textos conciliares fazem justiça a tal asserção. Não se saberia


melhor resumir a fé islâmica em Deus, como nestas frases do Lumen Gentium48:


“Os muçulmanos que professam a fé de Abraão adoram conosco o Deus único,


misericordioso, futuro juiz dos homens no último dia...”.


Compreende-se, desde logo, o protesto dos muçulmanos diante do costume


muito frequente de nunca se dizer Deus, mas “Allah, em língua europeia.


Alguns muçulmanos letrados elogiam a tradução do Alcorão de D. Masson


por ter “enfi m” escrito “Deus” e não “Allah”. E o texto do Vaticano, por fazer


observar: “Allah é a única palavra que têm os cristãos de língua árabe para dizer


Deus”.


Muçulmanos e cristãos adoram um Deus único. O documento do Vaticano


retoma a seguir a crítica dos outros julgamentos falsos lançados sobre o


Islam.


O “fatalismo do Islam, preconceito tão difundido, é examinado e, com


apoio em citações do Alcorão, o documento lhe opõe o sentido da responsabilidade


do homem que será julgado por seus atos. Ele mostra que a concepção


de um juridismo do Islam é falso e lhe opõe, ao contrário, uma sinceridade da


fé, com a citação de duas frases do Alcorão, tão mal conhecidas pelos ocidentais:


“Não há imposição quanto à religião...” (capítulo 2, versículo 256).


“... E (Deus) não vos impôs difi culdade alguma na religião...” (Capítulo 22,


Versículo 78).


O documento opõe à ideia difundida do Islam, religião do temor, ao


Islam, religião do amor ao próximo, enraizado na fé em Deus.


47 - Transcrição francesa é Dieu.


48 - Lumen Gen􀆟 um, 􀆡 tulo de um documentário do Concílio Va􀆟 cano II (1962-1965)


118





Ele refuta a ideia que propagaram falsamente, segundo a qual não há


moral muçulmana, e esta outra dividida entre judeus e cristãos, sobre o fanatismo


do Islam, que ele comenta nestes termos: “De fato o Islam não foi muito


mais fanático ao longo de sua história do que as cidades sacras da cristandade,


quando a fé cristã ali recebia, de alguma sorte, valor político”. Aqui, os autores


citam as expressões do Alcorão que mostram que o que os ocidentais traduzem


abusivamente por “Guerra santa”49, “se diz, em árabe, Al Jihad Fi sabil Allah”, “o


esforço sobre o caminho de Deus”, “esforço para propagar o Islam e o defender


contra seus agressores”. E o documento do Vaticano prossegue: O Jihad não é


de modo algum o Kherem bíblico, ele não tende à exterminação, mas a estender


a novos lugares os direitos de Deus e dos homens” - «As violências passadas do


Jihad seguiam, em geral, as leis da guerra; e no tempo das Cruzadas não foram


sempre os muçulmanos que perpetraram as maiores matanças».


O documento trata, enfi m, do preconceito, segundo o qual o Islam seria


“uma religião fi xadora, que mantém seus adeptos numa Idade Média superada,


e que os torna inaptos a se adaptar às conquistas da Idade Moderna». Ele compara


algumas situações análogas que se observam em países cristãos e declara:


«Nós encontramos [...] elaboração tradicional do pensamento muçulmano um


princípio de evolução possível da sociedade civil».


Esta defesa do Islam pelo Vaticano espantará, estou certo disso, a muitos


de nossos contemporâneos crentes, sejam eles, muçulmanos, judeus ou cristãos.


Ela é una manifestação de sinceridade e de um espírito de abertura, que


contrasta singularmente com as atitudes passadas. Mas bem poucos ocidentais


são alertados por essas novas tomadas de posição pelas mais altas instâncias da


Igreja Católica.


Quando o fato se torna conhecido, o espanto é menor por se conhecerem


os atos concretos que levaram à efetivação dessa reaproximação: Primeiro, a


visita ofi cial do presidente do Secretariado do Vaticano para os não cristãos ao


rei Faisal, da Arábia Saudita.


49 - Os tradutores, bem célebres, do Alcorão não escaparam a este hábito secular de pôr,


em sua tradução, o que, em realidade, não se encontra nos textos árabes. Com efeito,


sem alterar o próprio texto, podemos juntar os 􀆡 tulos que não existem no original; este


acréscimo modifi ca o sen􀆟 do geral’ Assim, R. Blachère, na sua tradução bem conhecida


(Editores Maisonneuve et Larose, Paris, 1966, p. 115), insere um 􀆡 tulo que não existe


no Alcorão: “Obrigações da Guerra Santa no início de uma passagem que é, incontestavelmente,


uma chamada às armas, mas que não tem esse caráter que se lhe dá. Como,


depois disso, o leitor que não pode aceder ao Alcorão, senão pela tradução, não estaria


persuadido de que o muçulmano tem a obrigação de fazer a Guerra Santa”?


119





Depois, a recepção ofi cial do Papa Paulo VI aos grandes Ulemás da Arábia


Saudita, durante o ano de 1974.


Percebe-se melhor, desde então, o alto signifi cado espiritual da recepção


aos Grandes Ulemás pelo Msr. Elchinger, na Catedral de Strasbourg, durante a


qual o prelado convidou os Ulemás a fazerem em sua prece, no coro da catedral,


o que eles fi zeram diante do altar, voltados em direção a Meca.


Se os representantes dos escalões mais elevados dos mundos muçulmano


e cristão, na fi delidade ao mesmo Deus e no respeito mútuo de suas divergências,


entendem-se assim para travar um diálogo religioso, não é natural que


outros aspectos de cada uma das Revelações sejam confrontados? O objetivo


dessa confrontação é, nesse caso, o exame das Escrituras à luz dos dados científi


cos e dos conhecimentos relativos à autenticidade dos textos. Esse exame deve


ser empreendido para o Alcorão, como o foi para a Revelação judeu-cristã.


As relações entre as religiões e a ciência não foram as mesmas, em todos


os lugares e em todos os tempos. Consta que nenhuma escritura de uma


religião monoteísta preceitua condenação à ciência. Mas, na prática, é preciso


reconhecer, os cientistas, tiveram suas rusgas50 com as autoridades religiosas


de certas confi ssões. No meio cristão, durante numerosos séculos, por sua


iniciativa pessoal e sem se apoiar em textos autênticos das Escrituras, as autoridades


responsáveis opuseram-se ao desenvolvimento das ciências. Elas tomaram,


contra os que procuravam fazê-las progredir, as medidas que nós conhecemos


e que frequentemente levavam cientistas ao exílio, se eles quisessem evitar a


fogueira, salvo se fi zessem retratação pública, retifi cassem sua atitude e implorassem


o perdão. A esse propósito, cita-se sempre o caso do processo de Galileu,


perseguido por haver retomado as descobertas de Copérnico sobre a rotação


da Terra. Ele foi condenado em consequência de uma interpretação errônea da


Bíblia, porque nenhuma Escritura podia, validamente, ser evocada contra ele.


Para o Islam, a atitude perante a ciência foi, em geral, bem outra. Nada


pode ser mais claro que o famoso Hadith do Profeta: “Pesquisa a ciência mesmo


na China”; que exprime que a investigação do saber é uma obrigação estrita, a


cada muçulmano. Fato capital, como nós veremos mais tarde nesta parte do livro,


o Alcorão, que convida sempre a cultivar a ciência, contém múltiplas considerações


sobre os fenômenos naturais, com detalhes explicativos que aparecem


rigorosamente conforme os dados da ciência moderna. Não há equivalentes


desse gênero na Revelação judeu-cristã.


50 - Barulho, briga, desordem, questão.



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