Por que os Muçulmanos Jejuam?
(parte 1 de 2)
A maioria de nós que está na luta contra o aumento de peso já experimentou
alguma forma de jejum, como um só de frutas, à base de água ou um jejum livre
de açúcar. Mas o que muitos podem considerar muito estranho e intrigante é uma
nação inteira de pessoas; homem ou mulher, idoso ou jovem, rico ou pobre, ficar
completamente sem comida e bebida da alvorada a pôr-do-sol por um mês inteiro -
o Ramadã. Qual o significado do Ramadã além de horas de trabalho mais
curtas? Não é uma prática muito dura? É meramente um momento no qual os
muçulmanos dormem e jejuam e mal trabalham o dia todo, e comem, bebem e se
divertem ficando acordados a noite inteira? Qual é o espírito real do Ramadã?
Jejum Prescrito em Todas as Religiões
“Jejum” significa se abster de alimento ou de certos tipos de alimentos
voluntariamente, como observância a um dia sagrado ou como demonstração de
sofrimento, tristeza ou arrependimento.[1] Essa prática pode ser encontrada na
maioria das principais religiões do mundo. Por exemplo, no Hinduísmo o jejum
em sânscrito é chamado upavaasa. Hindus devotos observam o jejum em ocasiões
especiais como um sinal de respeito aos seus deuses pessoais ou como parte de sua
penitência. A maioria dos indianos devotos jejua regularmente ou em ocasiões
especiais como festivais. Nesses dias não comem nada, comem apenas uma vez
ou comem frutas ou uma dieta especial de alimentos simples.[2] Para os judeus, o
dia Yom Kippur (“Dia do Perdão”) é o último dos Dez Dias de Arrependimento
observado no décimo dia de Tishri. Nesse dia é proibido comer, beber, lavar, usar
couro ou ter relações sexuais. Além disso, existem proibições relacionadas ao
trabalho que são semelhantes àquelas do Sabbath.[3] Deve-se notar também que
está registrado na Torá que Moisés (que a paz esteja sobre ele) jejuou.
“E Moisés esteve ali com o Senhor quarenta dias e quarenta noites; não
comeu pão, nem bebeu água,...” (Êxodo 34:28)
Para católicos entre cristãos, a Quaresma é a época principal de jejum,
imitação do jejum de quarenta dias de Jesus (que a paz esteja sobre ele). No
século quatro era observado como seis semanas de jejum antes da Páscoa ou da
Semana Santa. Foi ajustado para quarenta dias de jejum na maioria dos lugares no
século sete.[4] Está registrado nos Evangelhos que Jesus (que a paz esteja sobre
ele) jejuou como Moisés.
“E, tendo jejuado quarenta dias e quarenta noites, depois teve fome.”
(Mateus 4:2 & Lucas 4:2)
É nesse contexto que Deus afirma no Alcorão:
“Ó crentes, está-vos prescrito o jejum, tal como foi prescrito a
vossos antepassados, para que se conscientizeis de Deus.”
(Alcorão 2:183)
Entre os Melhores Atos de Virtude
Embora na maioria das religiões o jejum seja para expiação de pecado ou
redenção para pecado, no Islã é primariamente para aproximação de Deus, como
afirmado no versículo citado acima. Sendo assim a consciência de Deus é o
prerequisito para a virtude e grande ênfase seja colocada sobre o jejum no
Islã. Sendo assim, não surpreende que tenha sido perguntado ao Profeta
Muhammad, que a misericórdia e bênçãos de Deus estejam sobre ele:
“Qual é a melhor ação?” Ele respondeu: “Jejuar, porque nada se iguala a
isso.” (Al-Nasa’i)
Os níveis de jejum variam na mesma proporção das facetas em ser humano. O
jejum adequado deve abranger todas as dimensões da existência humana para ter o
efeito divinamente pretendido. A seguir estão alguns dos principais níveis de
jejum:
Os Níveis de Jejum
O Nível Ritual
Esse nível de jejum requer que as regras básicas para o jejum sejam
cumpridas, que são evitar comida, bebida e relações sexuais entre a alvorada e o
pôr-do-sol por 29 ou 30 dias a cada ano. Nesse nível se segue basicamente a letra
das leis em relação ao jejum, sem consideração particular pelo espírito do
jejum. Esse nível de entrada deve ser cumprido para o jejum ser islamicamente
correto, mas os outros níveis devem ser acrescentados para o que o jejum tenha
um impacto real no jejuante. Jejuar apenas nesse nível não beneficiará
espiritualmente, exceto pela perspectiva de submissão às instruções divinas, se a
pessoa decidir seguir o ritual de forma consciente e não meramente de acordo com
tradição. Dessa forma, o nível ritual em si não purificará de pecado ou expiará
pelo pecado.
O Nível Físico
Jejuar no nível “físico” faz com que o jejuante experimente a angústia da fome
e sede quando a forma profética (Sunnah) de jejuar é observada. O Profeta
Muhammad costumava consumir uma refeição bem leve antes da alvorada (suhur)
e uma refeição moderada (iftar) para quebrar o jejum no pôr-do-sol evitando, de
forma escrupulosa, encher seu estômago. Relata-se que ele disse:
“O pior recipiente que um ser humano pode encher é seu estômago. Alguns
bocados de comida para manter a pessoa de pé são suficientes. Entretanto, se
o desejo o sobrepujar, que coma um terço, beba um terço e deixe um terço
para respirar.” (Ibn Majah)
O Profeta costumava quebrar seu jejum com umas poucas tâmaras frescas ou
secas e um copo de água, pouco antes de começar a oração do pôr-do-sol.[5] Esse
nível permite ao jejuante experimentar as aflições da fome e sede e, portanto,
desenvolver simpatia por aqueles que têm fome e sede em outras partes do mundo.
Benefícios Médicos
No nível físico, alguns químicos no cérebro que transmitem mensagens e
criam sentimentos, chamados neurotransmissores, são afetados pelo jejum. O
jejum encoraja o sistema neurotransmissor de endorfina, relacionado ao
sentimento de bem estar e euforia, a produzir mais endorfinas e, de fato, nos fazer
“sentir” melhor. É semelhante ao efeito do exercício (mas sem o trabalho físico).
Também foi observado pelos médicos que jejuar melhora a saúde física de várias
formas. Por exemplo, durante o jejum o corpo usa o colesterol armazenado
(gordura) que é depositado no sistema sanguíneo, e também em outras áreas
gordurosas do corpo. Dessa forma, ajuda a manter o corpo firme e diminui o
perigo de ataques cardíacos. A diferença entre o nível ritual 1 e o nível físico 2 é
que uma pessoa que faz apenas o jejum ritual pode fazer grandes refeições antes
de começar a jejuar e imediatamente após o término do jejum e,
consequentemente, não sentir forme ou sede durante o mês todo. Entretanto,
como o nível um, se o jejuante não incorporar os outros níveis de jejum, o jejum
será apenas exaustivo fisicamente. O Profeta disse:
“Um jejuante pode não ganhar nada do jejum, exceto fome e sede.” (Ibn
Majah)
Footnotes:
[1] Webster’s New Twentieth Century Dictionary of the English Language (Novo Dicionário
Webster do Século Vinte de Língua Inglesa), p. 665.
[2] Saranam.com/Enciclopédia Hindu.
[3] Dictionary of World Religions (Dicionário de Religiões do Mundo), p. 817.
[4] Dictionary of World Religions (Dicionário de Religiões do Mundo), p. 425.
[5] Abu Dawud
(parte 2 de 2)
O Nível Libidinal
O instinto e ímpeto sexual (libido) são refreados nesse nível de jejum. Nesses
tempos nos quais a mídia joga com os desejos sexuais para promover e vender
produtos, a habilidade de controlar esses desejos poderosos é uma qualidade
positiva. Jejuar fisicamente reduz os desejos sexuais e o fato de que o jejuante tem
que evitar qualquer coisa que possa estimulá-lo psicologicamente ajuda ainda mais
a baixar a libido. O Profeta Muhammad, que a misericórdia e bênçãos de Deus
estejam sobre ele, disse:
“Ó jovens, aqueles entre vocês que forem capazes de casar que o façam,
porque isso restringe os olhares e protege as partes íntimas. Aqueles que não
têm condições de casar devem jejuar, porque é uma proteção.” (Saheeh Al-
Bukhari)
Ao se abster de atos sexuais permissíveis, o jejuante facilita para si mesmo o
controle sobre os atos sexuais que não são permitidos quando não está jejuando.
O Nível Emocional
Jejuar nesse nível envolve controle de muitas emoções negativas que se
instalam na mente e alma humanas. Por exemplo, entre as emoções mais
destrutivas está a raiva. O jejum ajuda a controlar essa emoção. O Profeta
Muhammad disse:
“Quando estiverem jejuando devem se abster de atos indecentes e conversa
desnecessária. E se alguém começar uma conversa obscena ou tentar começar
uma discussão, simplesmente diga: Estou jejuando.” (Saheeh Al-Bukhari)
Assim, nesse nível devem ser evitadas quaisquer emoções negativas que
desafiam o jejuante. Deve-se abster de conversas luxuriosas e argumentos
inflamados. Mesmo quando se está correto, é melhor abrir mão do direito e
manter o jejum emocional intacto. Da mesma forma, a emoção negativa do ciúme
é reduzida, já que todo jejuante está reduzido ao denominador comum da
abstinência; ninguém é externamente superior ao outro nesse aspecto.
O Nível Psicológico
Esse nível ajuda o jejuante a controlar maus pensamentos psicologicamente e o
treina, até certo ponto, a superar a mesquinhez e ganância. Relata-se que o Profeta
disse:
“Allah não precisa da fome e sede da pessoa que não se abstém de mentir e
agir de acordo com suas mentiras, mesmo que observe o jejum.” (Saheeh Al-
Bukhari)
Nessa época de gratificação imediata, quando as coisas do mundo são usadas
para satisfazer as necessidades e desejos humanos, a habilidade de retardar a
gratificação é uma característica importante. O que fica entre gratificação
imediata e gratificação adiada é a paciência. Durante o jejum os crentes aprendem
a ter paciência e os benefícios decorrentes.
De uma perspectiva psicológica, é bom estar de alguma forma desvinculado
das coisas do mundo. Não há nada errado em desfrutar de uma vida boa e plena –
de fato, pode-se e deve-se esperar por isso. Entretanto, é importante que as
pessoas sejam capazes de se desvincular de coisas materiais para que não se
tornem a parte mais importante de suas vidas. O jejum dá a oportunidade de
superar os muitos vícios que se tornaram uma parte importante da vida
moderna. A comida, para muitas pessoas, fornece conforto e alegria, e a
habilidade de se separar dela dá ao jejuante o benefício psicológico de saber que
tem algum nível de controle sobre o que fazem e o que não fazem.
O Nível Espiritual
Para estabelecer o nível mais alto e importante de jejum, o nível de
consciência de Deus, o Profeta Muhammad fez da renovação da intenção para o
jejum um requisito, antes de cada dia de jejum. Relata-se que ele disse:
“Quem não tiver feito a intenção de jejuar antes de Fajr (a alvorada) não terá
jejuado.” (Abu Dawud)
A renovação diária da intenção ajuda a estabelecer a base espiritual da
sinceridade essencial para que os efeitos purificadores espirituais do jejum
operem. O jejum sincero purifica e expia pecados, como o Profeta disse:
“Quem jejuar no Ramadã com fé sincera e em busca de recompensa de Deus,
terá seus pecados anteriores perdoados.”
Também se relata que ele disse: “O período entre um Ramadã e outro é
expiação para os pecados.” O jejum sincero aproxima de Allah e conquista uma
recompensa especial. O Profeta informou que existe um portão no paraíso
chamado Rayyan reservado para aqueles que jejuam, e também disse:
“Quando chega o Ramadã, os portões do Paraíso se abrem.” (Saheeh Al-
Bukhari)
Jejuar é basicamente entre a pessoa e Deus, e ninguém pode ter certeza se uma
pessoa está realmente jejuando. Por causa desse aspecto íntimo do jejum, o
Profeta citou a palavra de Allah:
“Todo ato dos descendentes de Adão é por eles próprios, exceto o jejum. O
jejum é para Mim somente, e somente Eu darei a recompensa.” (Saheeh
Muslim)
Quando combinado com os níveis anteriores de jejum, esse nível transforma
uma pessoa interiormente. Restaura, revive e regenera a espiritualidade do
jejuante e modifica radicalmente sua personalidade e caráter. Esses são produtos
preciosos de um estado elevado de consciência de Deus.
No primeiro dia do mês seguinte, depois de outra lua nova ser avistada, é feita
uma celebração especial, chamada Id al-Fitr. Uma quantidade de gêneros
alimentícios é doada para os pobres (Zakat al-Fitr), todos se banham e colocam
suas melhores e, de preferência novas, roupas, e são feitas orações
congregacionais de manhã cedo, seguidas de festividades de visitas aos parentes e
amigos.
Existem outros dias de jejum ao longo do ano. Os muçulmanos são
encorajados a jejuar seis dias em Shawal, o mês que se segue ao Ramadã, às
segundas e quintas, e no nono e décimo, ou décimo e décimo - primeiro dia de
Muharram, o primeiro mês do ano. O décimo dia, chamado Ashura, também é um
dia de jejum para os judeus (Yom Kippur) e Allah ordenou aos muçulmanos
jejuarem dois dias para se diferenciarem do Povo do Livro.
Embora o jejum em si seja encorajado, o jejum constante, assim como o
monasticismo, celibato e outras formas de se afastar do mundo real, são
condenadas no Islã. Jejuar nos dois dias de festa, Id al-Fitr e Id al-Adha, a festa do
Hajj, é estritamente proibido.