Com o tempo foi considerado que a proibição dos juros era um dogma religioso que precisava ser abolido. Não se podia mais permitir que a religião conduzisse a economia. Esse certamente foi o sentimento expresso pelo famoso economista e historiador Richard Tawney quando afirmou: “Todo o esquema do pensamento medieval tentou tratar dos assuntos econômicos como uma parte de hierarquia de valores abrangendo todos os interesses e atividades das quais o ápice era a religião.” [1] Ao mesmo tempo, entretanto, parece que a mudança que ocorreu na atitude não foi baseada puramente em razões econômicas. Lawrence Dennis afirmou:
Aristóteles, os canonistas católicos romanos, o Torá judaico. . . Todos proibiram empréstimos a juros, ou denunciaram juros como usura. Empréstimos a juros aumentaram nos séculos medievais para acomodar príncipes que precisavam e não podiam levantar dinheiro suficiente para a guerra ou outros propósitos públicos. Contrariamente às idéias atuais, os empréstimos não foram originalmente desenvolvidos como forma de financiar o comércio. Os mercadores venezianos, holandeses, hanseáticos, britânicos e outros até o século 17 financiavam suas operações com as contribuições de capital de sócios. [2]
Dennis afirma ainda:
Os canonistas católicos não desaprovavam os lucros em empreendimentos comerciais, aluguel pelo uso da terra ou venda de frutos da terra ou outro capital. Desaprovavam os juros sobre dinheiro emprestado. Durante o período da Reforma os juros começaram a ser racionalizados principalmente pelos protestantes de forma a contornar as objeções canonistas. A Igreja Católica nunca abandonou sua atitude em relação à usura, mas aquiesceu ou tolerou os empréstimos com base em certas suposições. A aquiescência moral pela Igreja Católica e o endosso positivo pelos comerciantes calvinistas passaram a ser incorporados nas leis, pensamentos e padrões de comportamento de sociedades modernas. [3]
As racionalizações a que Dennis se refere podem ser vistas em vários comentários sobre a Bíblia. Embora os textos do Velho Testamento sejam muito claros em sua condenação aos juros, não impediu sábios posteriores de virtualmente ignorarem ou aparentemente distorcerem essa proibição. [4] Por exemplo, o Henry’s Concise Commentary (Comentário Conciso de Henry) para Levítico 25:37 afirma:
E até agora essa lei continua válida, mas nunca pode ser pensada como válida onde dinheiro é tomado emprestado para compra de terras, negócios ou outras melhorias; porque é razoável que o emprestador compartilhe com o tomador do empréstimo no lucro. A lei aqui é pretendida para o alívio do pobre, para quem às vezes o empréstimo equivale a uma caridade.
Essa explicação é refutável uma vez que os juros nunca tiveram relação com o emprestador compartilhar com o tomador de empréstimo no lucro. Se fosse o caso, muitos dos males dos juros seriam removidos. Da mesma forma, no comentário de Jameison-Fausset-Brown se lê:
“A usura era severamente condenada (Salmos 15:5; Ezequiel 18:8,17), mas a proibição não pode ser considerada aplicável à prática moderna dos homens em negócios, tomar emprestado e emprestar a taxas legais de juros.”
Como o ato foi de severamente condenado a não ser passível de aplicação às “práticas modernas dos homens em negócios” Nenhuma lógica ou prova é fornecida para essa transição súbita. Da mesma forma, em seu comentário sobre Deuteronômio 23: 19-20, o comentário Jameison-Fausset-Brown afirma:
“Não emprestarás com usura a teu irmão. . . … mas somente ao estrangeiro – os israelitas viviam em uma sociedade simples e eram encorajados a se emprestar mutuamente de maneira amigável, sem qualquer esperança de ganho. Mas o caso era diferente com os estrangeiros, que, engajados em comércio, tomavam emprestado para aumentar seu capital e podia-se razoavelmente esperar que pagassem juros sobre seus empréstimos.”
De novo, nenhuma evidência é dada para essa proposição. (Parece que os textos sagrados não são capazes de se expressar adequadamente.) De fato,mesmo um economista famoso estava disposto a fornecer comentário bíblico: Paul Samuelson escreveu em seu clássico livro sobre economia: “As declarações bíblicas contra os juros e usura claramente se referem a empréstimos feitos para consumo, ao invés de com propósito de investimento.” [5]
Com a remoção de objeções “escolásticas”, passou a ser o papel da economia justificar o pagamento de juros. Isso é mais difícil do que parece. Haberler estava muito certa quando declarou:
A teoria dos juros tem sido um ponto fraco nas ciências econômicas por um longo tempo e a explicação e a determinação das taxas de juros continuam a dar margem para mais divergências entre economistas do que qualquer outro ramo da teoria econômica geral.[6]
Na realidade, entre os economistas “não existe uma única teoria de juros adequada e aceita de forma geral que possa dar uma explicação sólida da origem e causa dos juros.”
Os juros são definidos no Dicionário Oxford de Inglês como “dinheiro pago para o uso de dinheiro emprestado (o principal) ou para ter paciência com um débito, de acordo com uma taxa prefixada.” [1]
De fato, os indivíduos e o mundo como um todo provavelmente sabem muito bem o peso dos juros, de modo que ninguém realmente precisa da definição acima. Os juros são conhecidos por qualquer um que viva em um país capitalista. Tornaram-se completamente institucionalizados e aceitos nas economias modernas, de modo que é quase impossível conceber que exista alguém que se oponha completamente a eles e recuse quaisquer transações que envolvam juros. Mas existem muçulmanos devotos que se recusam a lidar com juros.
A razão real de os muçulmanos não lidarem com juros é que lhes é proibido pela religião islâmica, como veremos de forma detalhada mais adiante. Ao mesmo tempo, os muçulmanos acreditam que a orientação do Alcorão é baseada em Seu conhecimento, sabedoria e justiça. Em outras palavras, Deus não proíbe algo aos humanos sem haver alguma razão. Sendo assim, definitivamente existem razões sólidas – algumas das quais somos capazes de reconhecer claramente – pelas quais Deus proibiu essa prática.
No mundo de hoje os muçulmanos são bombardeados constantemente com argumentos a favor dos juros. Muitos muçulmanos sucumbiram a essa pressão e argumentos supostamente racionais que os levaram a aceitar o conceito de juros.
Consequentemente, esse artigo tem a intenção de discutir a posição islâmica sobre os juros com suporte nos textos básicos da fé e também entrar em uma discussão racional sobre os juros, para determinar se os argumentos dados a favor deles são verdadeiramente válidos.
Orientação de Deus para a Humanidade
O Islã ensina que Deus proveu orientação de forma misericordiosa para a humanidade em todos os aspectos da vida. Essa orientação não cobre apenas os atos de adoração, mas tudo desde economia e ética empresarial a relações conjugais, internacionais, éticas de guerra e assim por diante. Uma das características que distingue os muçulmanos de hoje é que continuam a acreditar nessa orientação de Deus, enquanto que muitos a descartaram ou deixam de lado seus ensinamentos religiosos quando se trata de assuntos “seculares”.
Existe um grande número de razões para muitos muçulmanos não terem seguido o mesmo caminho que, por exemplo, vários judeus e cristãos seculares seguiram. Uma das razões mais importantes é que o muçulmano pode confiar que a revelação que forma a base da religião islâmica não foi manipulada ou distorcida desde a época de sua revelação. Em outras palavras, não houve interferência ou distorção humanas na revelação. Assim, não existe necessidade dos humanos agora corrigirem os erros dos humanos primitivos, como os judeus ou cristãos seculares argumentariam. De fato, o único resultado para os muçulmanos seria os humanos, por sua interferência, prejudicarem a revelação que veio de Deus.
Segundo, muitos muçulmanos acreditam que não lhes foi apresentada qualquer evidência forte ou convincente de que de alguma forma sua religião não está em contato com a realidade ou é impraticável em tempos modernos. No Islã, por exemplo, nunca houve conflito entre religião e ciência, que levou a uma ruptura de confiança na igreja e uma virtual revolta contra a autoridade da religião como experimentado no Ocidente.[2] Muitas pessoas, até alguns muçulmanos, têm clamado por muitas mudanças dentro do Islã, mas na realidade os argumentos que têm apresentados são falhos e inconsistentes, para dizer o mínimo. O caso dos juros, tópico desse artigo, pode ser tomado como um excelente exemplo dessa natureza.
Interessantemente, embora o Islã esteja na mídia com muita frequência ultimamente, a experiência desse autor é que muitos não-muçulmanos não estão cientes da posição do Islã em relação aos juros. Assim, esse artigo lança luz sobre esse tópico importante – um tópico que não é um tópico “medieval” obsoleto, mas um que tem extrema relevância para o mundo hoje.
O mero excesso de opiniões tentando explicar a existência de juros e justificar seu pagamento – acompanhado por críticas críveis de todas essas opiniões por economistas respeitados e de destaque[1]- deve ser um sinal para todos de que algo não está muito certo. Na história do pensamento econômico, podem-se encontrar as seguintes teorias justificando os juros (entre outras):
(1) As Teorias “Sem Plausibilidade” (como Boehm-Bawerk as chama): foram desenvolvidas por Adam Smith, Ricardo e outros economistas. Essa teoria tem muitas falhas, incluindo confundir juros com lucro bruto sobre o capital. Ricardo ainda determinou todo o valor do capital ao trabalho - mas de alguma forma deixou de notar que nunca o trabalho recebia o pagamento pelo dito valor.
(2) As Teorias da Abstinência: esses tipos de teorias aparecem de vez em quando. Os economistas descobriram que “abstinência” pode não ser uma boa palavra para se usar[2] e com frequência a substituem por outros termos, como “espera” (a la Marshall). Os juros são, em essência, a retribuição que se recebe por “esperar” ou “se abster” de consumo imediato. Essa teoria fracassou porque parece pensar que poupar é a única função dos juros, que se verificou não ser verdadeiro.
(3) Teorias de Produtividade: os proponentes dessa teoria vêem produtividade como inerente ao capital e, consequentemente, os juros são simplesmente o pagamento por essa produtividade. A teoria, como apresentada por Say, supõe que o capital produz um valor excedente, mas, de novo, não existe prova para dar apoio a essa alegação. O máximo que se pode alegar é que algum valor foi criado, um pagamento ao capital, mas não se pode provar que o valor excedente foi criado, a essência de sua alegação de que os juros se justificam. Claro, essas teorias ignoram completamente os fatores monetários ao analisarem os juros.
(4) Teorias de Uso: “Boehm rejeitou a validade da suposição de que ao lado de cada bem de capital havia um “uso”, que era um bem econômico independente possuindo valor independente. Ele enfatizou ainda que ‘em primeiro lugar, simplesmente não existe algo como um uso independente de capital’ e, consequentemente, não pode existir um valor independente, nem sua participação originar o ‘fenômeno do valor excedente.’ Supor esse uso é criar uma ficção injustificável que se contrapõe a todos os fatos.”[3]
(5) Teorias de Remuneração: esse grupo de economistas vê os juros como a remuneração do “trabalho realizado” pelo capitalista. Embora apoiada por economistas ingleses, franceses e alemães, talvez essa opinião não precise de comentários.
(6) As Teorias Ecléticas (combinação de teorias anteriores, como a de Produtividade e Abstinência): Afzal-ur-Rahman escreve:
Essa linha de pensamento parece revelar um sintoma de insatisfação com a doutrina de juros como apresentada e discutida pelos economistas do passado e do presente. E, como nenhuma teoria sobre o assunto é em si considerada satisfatória, as pessoas têm tentado encontrar uma combinação de elementos de várias teorias para encontrar uma solução satisfatória do problema.[4]
(7) Teoria Moderna da Frutificação: Henry George foi o desenvolvedor dessa teoria, mas ela nunca teve peso suficiente para ter muitos seguidores (se é que houve algum).
(8) Teoria da Abstinência Modificada: outra teoria singular proposta por Schellwien; nunca teve muito impacto.
(9) A Teoria Austríaca (Teoria da Preferência pelo Tempo ou Ágio[5]): essa é a opinião que o próprio Boehm-Bawerk endossa. De acordo com essa teoria, os juros surgem “de uma diferença em valor entre os bens presentes e futuros.” Cassel criticou essa teoria em detalhes. Resume-se a uma teoria “de espera” extravagante.
(10) Teorias Monetárias (Teoria dos Fundos Emprestáveis, Teoria da Preferência por Liquidez, Teoria dos Estoques e Fluxos, Abordagem da Preferência por Bens): mais recentemente os economistas tentaram introduzir e enfatizar a influência de fatores monetários na questão dos juros. Na realidade, entretanto, a ênfase aqui começa a ser trocada de por que os juros são pagos para o que determina a taxa predominante de juros. “De acordo com Robertson, os juros na teoria da preferência pela liquidez são reduzidos a nada mais que um prêmio de risco contra flutuações em relação às quais não temos certeza. Deixa os juros em suspenso, em um vácuo, por assim dizer, havendo juros porque existem juros.”[6] Críticas semelhantes têm sido feitas a outras opiniões nessa família de teorias.
(11) Teoria da Exploração: incidentalmente os economistas socialistas sempre consideraram os juros como nada além de exploração. Deve ser lembrado que os “fundadores” da teoria capitalista, Adam Smith e Ricardo, acreditavam que a fonte de todo o valor é o trabalho. Se isso é verdade, então todos os pagamentos devem ser feitos ao trabalho e os juros não são nada além de exploração.
Em dois trechos Afzal-ur-Rahman forneceu excelentes conclusões referentes a essas diferentes teorias de juros. Ele afirma:
Um estudo crítico do desenvolvimento histórico do fenômeno dos juros demonstrou que os juros são pagos a um fator independente da produção, que pode ser chamado de espera ou adiamento ou abstinência ou uso, etc. Mas nenhuma dessas teorias respondeu ou provou por que os juros são pagos ou devem ser pagos a esse fator. Alguns apontam para a necessidade de espera; outros para a necessidade de abstinência, de adiamento; mas nenhuma dessas explicações responde à questão. Nem mera necessidade de espera ou adiamento ou abstinência, nem mero uso ou produtividade de capital é suficiente para provar que os juros são um pagamento necessário para o emprego do capital na produção. Além disso, essas teorias não responderam como um fator variável pode determinar um fator fixo como a taxa de juros. Como essa teoria pode ser válida ou defensável?[7]
Posteriormente ele escreve:
As teorias monetárias, como teorias de produtividade marginais, não tentaram responder a questão: por que os juros devem ser pagos? Ou por que os juros são pagos? Simplesmente ignoraram essa questão e buscaram refúgio na teoria de valor. Dizem como todas as outras coisas, que o preço do capital é determinado pela demanda e oferta de dinheiro. Mas parece que se esqueceram da diferença básica entre os dois problemas. A teoria de valor é um problema de troca, enquanto que a teoria dos juros é um problema de distribuição. Tanto os fundos emprestáveis quanto as teorias de preferência pela liquidez são basicamente teorias de oferta e demanda de juros e os explicam com referência a oferta e demanda por fundos emprestáveis e dinheiro, respectivamente. Mas não dão qualquer justificativa para o fenômeno dos juros. Mesmo que o capital tenha direito a uma compensação adequada como recompensa por sua contribuição à criação de riqueza, “somente pode pegar sua parte do aumento da riqueza nacional na medida de sua contribuição a ela. Não se pode permitir que fuja com seu pedaço de carne, determinado antecipadamente e sem relação com a realidade da produção”.[8] De acordo com Boehm Bawerk, o estudo de todas essas teorias revela o desenvolvimento de três conceitos básicos essencialmente divergentes do problema dos juros.” Um grupo, os representantes da teoria da produtividade, trata o problema dos juros como um problema de produção. Os representantes socialistas das teorias da exploração tratam o problema dos juros como puramente um problema de distribuição; enquanto que o terceiro grupo, que apóia as teorias monetárias, busca na teoria dos juros o problema de valor. Não há dúvida de que todas essas teorias foram confundidas pela magnanimidade e difusão do fenômeno dos juros, evitando a questão principal que é por que os juros devem ser pagos. De fato, despenderam todas as suas energias em solucionar o problema da espera, da abstinência, da produtividade, do “valor do trabalho” ou “da determinação de valor” e não disseram nada sobre a origem ou justificativa da instituição dos juros.