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Seria, entretanto, errado crer que, em nenhum momento da história


do Islam, alguns dos seus fi éis não tenham tido jamais atitude diferente para


com a ciência. É certo que, em algumas épocas, a obrigação de se instruir e


de instruir os outros foi mal entendida e que no mundo muçulmano, como


alhures, tentou-se, às vezes, sustar o desenvolvimento científi co. Mas quando


se lembra que, no período da Grandeza do Islam. entre o século VIII e XII da


era cristã, enquanto as restrições ao desenvolvimento científi co eram impostas


em nossos países cristãos, uma soma considerável de pesquisas e descobertas


foram efetuadas nas universidades islâmicas. É nessa época que se encontravam


extraordinários centros de cultura. Em Córdoba, a Biblioteca do califa continha


400.000 volumes. Averróis ensinava. Transmitiu-se a ciência grega, indiana. persa.


Eis porque se ia de diversos países da Europa estudar em Córdoba, como


em nossos dias se vai para aperfeiçoar alguns estudos nos Estados Unidos.


Quantos manuscritos antigos chegaram até nós por intermédio dos letrados


árabes, vinculando a cultura nos países conquistados! Quantas dívidas temos


nós em relação à cultura árabe em matemática (álgebra é árabe), astronomia,


física (óptica), geologia, botânica, medicina (Avicenas) etc.! A ciência toma, pela


primeira vez, o caráter internacional, nas universidades islâmicas da Idade Média.


Por essa época, os homens eram mais penetrados pelo espírito religioso, como


não o são em nosso tempo; e isso não os impedia de ser, no meio islâmico,


simultaneamente crentes e sábios. A ciência era gêmea da religião; nunca deveria


ter deixado de ser assim.


Em países cristãos, era a estagnação, nessa época medieval, o conformismo


absoluto. A pesquisa científi ca foi freada, não pela Revelação judeu-cristã


propriamente dita, repetimos, mas por aqueles que pretendiam ser seus servidores.


Depois do Renascimento, a reação natural dos sábios foi a de tomar sua


desforra contra seus adversários do passado, e a desforra prossegue ainda em


nossos dias. A ponto de que, atualmente no Ocidente, falar de Deus no meio


científi co é verdadeiramente se singularizar. Essa atitude tem repercussões em


todos os jovens espíritos que recebem nossos ensinamentos universitários, muçulmanos


inclusive.


Como deixaria de ser assim, quando sabemos quais as posições extremadas


tomadas pelos nossos sábios mais eminentes? Certo prêmio Nobel de


Medicina tentou, nestes últimos anos, fazer admitir num livro destinado ao


grande público, que a matéria viva pode se criar de si mesma por arte do acaso,


a partir de algumas constituições elementares, e que, partindo dessa matéria


viva primitiva, ter-se-iam formado, sob a infl uência de diversas circunstâncias


exteriores, seres vivos organizados para culminar no formidável complexo que


é o homem.


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Os prodígios do conhecimento científi co contemporâneo, no domínio


da vida. não deveriam levar, aquele que refl ete, a uma conclusão oposta? A


organização que preside o nascimento da vida e a sua manutenção não se apresenta,


a quem a estuda, cada vez mais complicada? Quanto mais se a conhece


em seus pormenores, mais admiração ela desperta! Seu conhecimento não leva


a considerar como é, cada vez menos possível, o fator acaso no fenômeno da


vida? Quanto mais se avança na posse do saber, mui particularmente no que


concerne ao infi nitamente pequeno, mais eloquentes são os argumentos em


favor da existência de um Criador. Mas, em lugar de ser, diante de tais fatos,


cheio de humildade, é de orgulho que o homem se reveste. Ele se crê autorizado


a achincalhar toda a ideia de Deus, assim como despreza tudo o que encontra


em seu caminho, se isso constituir um obstáculo a tau prazer e a seu apetite de


gozo. Tal é a sociedade materialista, em plena expansão atual no Ocidente.


Que forças espirituais opor a essa poluição do pensamento por muitos


sábios contemporâneos?


Perante a onda materialista e a invasão do Ocidente pelo ateísmo, tanto


o cristianismo como o judaísmo apregoam sua incapacidade de repressão. Tanto


um quanto outro estão em plena confusão e, de decênio, não se vê gravemente


diminuída a resistência à corrente que ameaça tudo carregar. O materialismo


ateu não vê no cristianismo senão um símbolo construído pelos homens, há


cerca de milênios, para fi rmar a autoridade de uma minoria sobre seus semelhantes.


Não se encontraria, nas escrituras judeu-cristãs, uma linguagem que se


aparente, mesmo muito de longe, à sua: elas contêm tantas dúvidas, contradições


e incompatibilidades com os dados científi cos modernos, que se recusa a


levar em consideração alguns textos que a imensa maioria dos teólogos quer


fazer passar como um todo indissolúvel.


Falam-lhe do Islamismo? Ele sorri com uma sufi ciência que só se iguala


à insufi ciência de seu conhecimento do assunto. De acordo com a maior parte


dos intelectuais ocidentais, quaisquer que sejam suas crenças, religiosas, ele carrega


uma impressionante de ideias falsas.


Sob esse ponto de vista, é preciso lhe conceder algumas desculpas: em


primeiro lugar, exceção feita das tomadas de posição mais recentes nas mais altas


instâncias do Catolicismo, o Islam é, como sempre em nossos países, objeto


do que chamamos uma “difamação secular”. Todo ocidental, que adquiriu sobre


ele conhecimentos aprofundados, sabe a que ponto sua história, seu dogma,


seus fi ns, foram mascarados. É preciso igualmente levar em consideração o fato


de que os documentos publicados em línguas ocidentais sobre o assunto, exce122





to os estudos mais especializados, não facilitam o trabalho dos que querem se


instruir.


Realmente, o conhecimento da Revelação Islâmica é, sob este ponto de


vista, fundamental. Ora, encontram-se muitas passagens do Alcorão, em particular


aquelas que têm relação com os dados da ciência, que são mal traduzidas


ou comentadas de maneira tal que um cientista teria o direito de emitir - aparentemente


com justiça - críticas que o Livro não merece em realidade› Por


menor digno de ser imediatamente destacado: essas inexatidões de tradução


ou esses comentários errôneos (estando os dois, frequentemente, associados),


que não seriam de se admirar há um ou dois séculos, chocam, em nossos dias,


um homem de ciência que, diante de uma frase mal traduzida, contendo, por


esse motivo, uma afi rmação cientifi camente inadmissível, é levado, a se recusar


a tomá-la seriamente, em considerações› Daremos› no capítulo consagrado à


produção humana, um exemplo bem característico desse tipo de erro.


Por que esses erros de tradução? Eles se explicam pelo fato de que


os tradutores modernos retomam frequentemente, sem grande espírito-crítico,


interpretações de comentadores antigos. Estes tinham em sua época, desculpas


para ter dado a uma palavra árabe, possuindo vários sentidos possíveis,


uma defi nição imprópria, porque não podiam compreender o sentido real da


palavra ou da frase, que se revela somente em nossos dias graças aos nossos


conhecimentos científi cos. Em outras palavras, colocou-se assim o problema da


necessária revisão de traduções ou de comentários, que não se era capaz de


efetuar convenientemente numa determinada época, ao passo que, em nossos


dias, possuímos os elementos que lhes podem dar o sentido verdadeiro. Tais


problemas de tradução não se colocam pala os textos da Revelação judeu-cristã:


o caso evocado aqui é absolutamente especial para o Alcorão.


Esses aspectos científi cos, muito particulares do Alcorão, logo de início,


deixaram-me profundamente atônito porque, até então, eu não tinha jamais


acreditado ser possível que se pudesse descobrir, num texto redigido há mais


de treze séculos, tantas afi rmações relativas a assuntos extremamente variados,


absolutamente conforme os conhecimentos científi cos modernos. Eu não tinha,


de saída, nenhuma fé no Islam. Abordei este exame dos textos com o espírito


livre de todo preconceito, com inteira objetividade. Se alguma infl uência pôde


ter se exercido em mim, foi a dos ensinamentos recebidos em minha juventude,


quando não falávamos de muçulmanos, mas de maometanos, pala bem acentuar


que se tratava de uma religião fundada por um homem e que não podia, por


consequência, ter nenhuma espécie de valor aos olhos de Deus. Como muita


gente no Ocidente, eu poderia ter conservado sobre o Islam as mesmas ideias


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falsas tão difundidas em nossos dias, que eu fi co sempre admirado de encontrar,


fora dos especialistas, interlocutores esclarecidos sobre esses pontos. Confesso,


pois, que antes de ter-me dado uma imagem do Islam diferente daquela recebida


do ocidente, eu era, também, muito ignorante.


Se cheguei a perceber a falsidade dos julgamentos geralmente lançados


no Ocidente sobre o Islam, eu devo a circunstâncias excepcionais. Foi na Arábia


Saudita, que me deram os elementos de apreciação que me demonstraram a que


ponto se podia ter uma opinião errada a seu respeito, em nossos países.


Imensa fi cará minha dívida de gratidão para com o saudoso Rei Faisal,


cuja memória eu saúdo com respeito: ter tido a extraordinária honra de ouvi-


-lo falar do Islam e ter podido evocar diante dele determinados problemas de


interpretação alcorânica em relação à ciência moderna: isto fi cará gravado para


sempre em minha lembrança. Ter recolhido tão preciosos ensinamentos vindos


dele mesmo e de seu círculo. constituiu, para mim, um privilégio excepcional.


Tendo então medido a margem que separava a realidade do Islam da


imagem que dele se faz em nossos países ocidentais, experimentei a viva necessidade


de aprender o árabe, que não conhecia, para poder progredir no estudo


de uma religião tão mal conhecida. Meu primeiro objetivo residiu na leitura do


Alcorão e no exame de seu texto, frase por frase, com a ajuda dos diversos comentários


indispensáveis a um estudo crítico. Eu o abordei, prestando atenção


muito particular à descrição que ele faz de uma profusão de fenômenos naturais:


a precisão de certos detalhes do Livro sobre esses fenômenos, somente perceptível


no texto original, me impressionou em razão de sua conformidade com


as concepções que podemos ter, em nossa época, mas da qual um homem da


época de Muhammad não poderia ter a menor ideia. Eu li, em seguida, diversas


obras consagradas por autores muçulmanos aos aspectos científi cos do texto


alcorânico: eles me deram elementos mui uteis de apreciação, mas eu ainda não


descobri um estudo de conjunto efetuado sobre o assunto, no Ocidente.


O que logo impressiona o espírito de quem é confrontado com um


texto, assim, pela primeira vez, é a abundância dos assuntos tratados: a criação,


a astronomia, a exposição de certos assuntos concernentes à terra, aos reinos


animal e vegetal, à reprodução humana. Então, enquanto se encontram na Bíblia


monumentais erros científi cos, aqui eu não descobri nenhum. O que me obrigou


a me interrogar: se um homem foi o autor do Alcorão, como teria podido,


no século VII da era cristã, escrever o que se verifi ca, hoje, conforme os conhecimentos


científi cos modernos? Ora, nenhuma dúvida será possível: o texto que


nós possuímos hoje do Alcorão é bem um texto de atualidade, se ouso dizer


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(o capítulo seguinte desta terceira parte tratará da questão). Qual explicação


humana dar a esta constatação? A meu ver, não há nenhuma, porque não há


razão particular de pensar que um habitante da Península Arábica pudesse, no


tempo em que na França reinava o rei Dagoberto, possuir uma cultura científi ca


que deveria, para alguns assuntos, estar adiantada uma dezena de séculos sobre


a nossa.


Está bem estabelecido que, no momento da Revelação Alcoranista, que


se situa em um período aproximativo de vinte anos antes da Hégira (622 D.C.)


os conhecimentos científi cos da época estavam em fase de estagnação, havia


séculos, e que o período ativo da civilização islâmica, com o despertar científi co


que a acompanha, foi posterior ao fi m da Revelação do Alcorão. É preciso ignorar


esses dados religiosos e profanos para fazer a curiosa sugestão seguinte, que


eu pretendi formular algumas vezes: se existem no Alcorão algumas informações


de aspecto científi co que surpreendem, a razão é o avanço que tinham seu


tempo os cientistas árabes: Muhammad ter-se-ia inspirado em seus trabalhos.


Quem conhece um pouco da história do Islam e sabe que o período do


progresso cultural e científi co no mundo árabe na Idade Média é posterior a


Muhammad, não se permitiria tais fantasias. Refl exões desse tipo são tanto mais


fora de propósito, visto que a maioria dos fatos científi cos, sugeridos ou enunciados


muito distintamente no Alcorão, somente na época moderna receberam


sua confi rmação.


Concebe-se desde logo que, durante séculos, os comentadores do Alcorão


(inclusive aqueles do grande período da civilização islâmica) tinham infalivelmente


cometido erros na interpretação de certos versículos, dos quais eles


não podiam perceber o sentido exato. Não foi senão muito mais tarde, em um


período próximo de nossa época, que se pôde traduzi-los e interpretá-los corretamente.


Isto implica que, para compreender esses versículos alcorânicos, só


conhecimentos linguísticos aprofundados não são sufi cientes. É preciso possuir,


além disso, conhecimentos científi cos bem diversos. Um estudo como este é


pluridisciplinar, enciclopédico. Dar-se-á conta, à medida em que a exposição das


questões é levantada, da verdade dos conhecimentos científi cos que são indispensáveis,


para se perceber o sentido de alguns versículos do Alcorão.


O Alcorão não é tanto um livro, tendo, por fi m, expor certas leis que


regem o universo; ele tem um fi m religioso essencial. É principalmente a propósito


das descrições da Onipotência Divina que os convites para refl etir sobre


as obras da criação são endereçados aos homens. Eles são acompanhados por


alusões a fatos acessíveis à observação humana, ou a leis defi nidas por Deus que


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presidem à organização do universo, tanto no domínio das ciências da natureza


como no que concerne ao homem. Uma parte dessas afi rmações é de compreensão


fácil, mas, de uma outra parte, não se pode conceber a signifi cação se não


se está na posse dos conhecimentos científi cos indispensáveis para isso. Quer


dizer que o homem dos Séculos passados


não podia discernir deles senão um sentido aparente, que o levou, em alguns


casos, a tirar as conclusões, inexatas em razão da insufi ciência de seu saber na


época considerada.


A seleção dos versículos alcorânicos feita para o estudo de seus aspectos


científi cos parecerá, talvez, muito reduzida para alguns dos autores muçulmanos


que, antes de mim, despertam sua atenção sobre esses fatos. No conjunto, creio


ter retido um número um pouco mais reduzido de versículos do que eles o


fi zeram. Tenho, ao contrário, destacado alguns versículos aos quais não tinham


atribuído, até o presente, a importância que eles mereceriam, me parece, do


ponto de vista científi co. Se cometi erros não levando em considerações, para


este estudo, os versículos que eles tinham selecionado, espero que eles não me


julguem mal. Encontrei algumas vezes, também, em certos livros, interpretações


científi cas que não me pareciam exatas: é com toda isenção de ânimo e mui


consciente que eu lhes dei uma interpretação pessoal.


Eu pesquisei, igualmente, se existiam no Alcorão alusões aos fenômenos


que são acessíveis à compreensão humana, mas que não receberam confi rmação


da parte da ciência moderna: Assim, sob esse aspecto, pensei ter descoberto


que o Alcorão continha alusões à presença no universo de planetas semelhantes


à Terra. É preciso dizer que numerosos sábios consideram o fato como perfeitamente


aceitável, sem que os dados modernos possam fornecer a menor certeza.


Julguei que deveria citá-los, com todas as reservas que se impõem.


Se eu tivesse empreendido tal estudo há uns trinta anos, um outro fato


anunciado no Alcorão teria de ser juntado ao que acaba de ser citado, concernente


à astronomia: a conquista do espaço. Por essa época, considerava-se, logo


após os primeiros ensaios de foguete balístico, que um dia viria, talvez, em que


o homem teria as possibilidades materiais de escapar dos arredores terrestres


e de explorar o espaço. Sabia-se então que havia um versículo alcorânico que


pressagiava que um dia o homem realizaria esta conquista. A verifi cação agora


está feita.


Esta confrontação da Escritura santa com a ciência fez intervir para a


Bíblia, como para o Alcorão, noções pertinentes à verdade científi ca. Para que a


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confrontação seja válida, é preciso que o argumento científi co, sobre o qual se


apoia, seja perfeitamente estabelecido, e que não se preste a nenhuma discussão.


Aqueles que têm má vontade em aceitar a intervenção da ciência na apreciação


das escrituras negam que a ciência possa constituir um termo de comparação


viável (quer se trate da Bíblia, que não se submete à confrontação sem danos


- vimos por quais motivos -, ou do Alcorão, que nada tem a temer dela): a


ciência, adiantemos, é mutável com o tempo e um fato um dia admitido pode


ser rejeitado mais tarde.


Essa observação determina a seguinte colocação: é preciso distinguir


a teoria científi ca e o fato da observação devidamente controlada. A teoria é


destinada a explicar um fenômeno ou um conjunto de fenômenos difi cilmente


compreensíveis. A teoria é mutável em muitos casos: ela é susceptível de ser modifi


cada, substituída por outra, quando o progresso científi co permite melhor


analisar os fatos, e imaginar uma explicação mais válida. Ao contrário, o fato da


observação, verifi cado experimentalmente, não é susceptível de ser modifi cado:


pode-se defi nir melhor os seus caracteres, mas ele permanece como era. Desde


que se estabeleceu que a Terra girava em torno do Sol e a Lua em torno da


Terra, o fato não precisa de revisão; no futuro, poder-se-á, no máximo, defi nir


melhor as suas orbitas.


O fato de ter levado em consideração o caráter mutável das teorias, me


levou a afastar, por exemplo, um versículo alcorânico no qual um físico muçulmano


pensou estar anunciando o conceito da antimatéria, teoria atualmente


muito discutida. A{o contrário, pode-se, muito legitimamente, concentrar toda


a atenção em um versículo do Alcorão que evoca a origem aquática da vida,


fenômeno que não se poderá jamais verifi car, mas em favor do qual tantos argumentos


militam. Quanto aos fatos de observação, como a evolução do embrião


humano, pode-se perfeitamente confrontar os diferentes estágios descritos pelo


Alcorão com os dados da embriologia moderna e descobrir a absoluta conformidade


com a ciência dos versículos alcorânicos a esse respeito.


Essa confrontação Alcorão/Ciência foi completada por duas outras


comparações: de um lado, a confrontação com os conhecimentos modernos


dos dados bíblicos, versando sobre os mesmos assuntos; de outro, a comparação


do mesmo ponto vista científi co dos dados do Alcorão, Livro da Revelação


comunicada por Deus ao Profeta, e os dados dos Hadiths, livros de narrações


de declarações de Muhammad, que colocam fora da Revelação escrita.


Ao fi nal da terceira parte da obra, encontrar-se-ão os resultados pormenorizados


da comparação das narrações bíblicas e das narrações alcorânicas de


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um mesmo acontecimento, e os da passagem pelo crivo da crítica científi ca de


cada narração. O exame foi feito, por exemplo, para a criação e para o diluvio.


Tanto para um como para outro, se pôs em evidência as incompatibilidades da


narração bíblica com a ciência. Notar-se-á a perfeita concordância com a ciência


moderna das narrações alcorânicas que lhe concernam.


Notar-se-ão as diferenças que, precisamente, fazem com que uma narração


seja admissível na época moderna, ao passo que em outra não o é.


Esta constatação é de primeiríssima importância, porque, nos países ocidentais,


judeus, cristãos e ateus, concordam unicamente em afi rmar (sem, aliás, a menor


duas provas) que Muhammad escreveu ou fez escrever o Alcorão, imitando a


Bíblia; antecipam que as narrações alcorânicas da história religiosa retomam


as narrações bíblicas. Esta tomada de posição é tão leviana quanto aquela que


levaria a dizer que Jesus teria enganado, ele também, seus contemporâneos por


ter se inspirado no Antigo Testamento, no decorrer de sua predicação: todo


o Evangelho de Mateus é – já vimos - fundado sobre essa continuidade com


o Antigo Testamento. Que exegeta teria ideia de tirar de Jesus o seu caráter


de enviado de Deus por esse motivo? E exatamente assim, no entanto, que no


Ocidente, com mais frequência, se julga Muhammad: ele não fez senão copiar


a Bíblia. Julgamento sumário que não leva em consideração o fato de que, sobre


o mesmo acontecimento, Alcorão e Bíblia possam dar versões diferentes.


Prefere-se passar em silêncio a divergência das narrações. Declaram-nas idênticas


e assim os conhecimentos científi cos não têm de intervir. Essas questões serão


desenvolvidas a propósito das narrações da criação e do dilúvio.


As coleções dos Hadiths são para Muhammad, o que são os Evangelhos


para Jesus: as narrações sobre os feitos e palavras do Profeta, cujos autores


não são testemunhas oculares (pelo menos, para as compilações dos Hadiths


reputados mais autênticos, claramente posteriores à época de Muhammad). Eles


não constituem nenhuma espécie de livros, contendo a Revelação escrita. Eles


não são a Palavra de Deus, mas relatam os dizeres do Profeta. Nesses livros, comumente


difundidos, descobrem-se afi rmações que contêm erros do ponto de


vista científi co; em particular, as receitas médicas. Mas quem poderia dizer com


certeza que essas declarações atribuídas ao Profeta são autênticas? Nós deixamos


de lado, naturalmente, tudo o que pode concernir aos problemas de ordem


religiosa, que não são considerados aqui a propósito dos Hadiths. Muitos Hadiths


têm uma autenticidade duvidosa: eles são discutidos pelos próprios sábios


muçulmanos. Se o aspecto científi co de alguns deles é evocado nesta obra, é


essencialmente para pôr em destaque o que os diferencia, sob este ponto de


vista, do Alcorão, que não contém nenhuma afi rmação científi ca inadmissível. A


diferença é, ver-se-á, surpreendente.


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Esta última constatação torna inaceitável a hipótese daqueles que veem


em Muhammad o autor do Alcorão. Como um homem, antes iletrado, teria


podido, vir a ser, depois, sob o ponto de vista do valor literário, o primeiro


autor de toda a literatura árabe, e enunciar verdades de ordem científi ca que


nenhum outro ser humano podia elaborar naquele tempo, e isto sem fazer a


menor afi rmação errada a esse respeito?


As considerações que vão ser desenvolvidas neste estudo, exclusivamente


sob o ponto de vista científi co, levarão a julgar inconcebível que um homem,


vivendo no século VII da era cristã, pudesse, sobre os assuntos mais diversos,


emitir no Alcorão ideias que não são só de sua época e que concordam com o


que se demonstrará séculos mais tarde. Para mim, não existe explicação humana


para o Alcorão.


AUTENTICIDADE DO ALCORÃO


- História de sua Redação -


Uma autenticidade indiscutível dá ao texto alcorânico um lugar à parte


entre os livros da Revelação, lugar que ele não divide nem com o Antigo nem


com o Novo Testamento. Nas duas primeiras partes desta obra, passamos em


revista as modifi cações que sofreram o Antigo Testamento e os Evangelhos,


antes de chegar ao estado em que eles se encontram hoje em dia. Não se dá


o mesmo com o Alcorão, pelo simples motivo que ele foi fi xado no próprio


tempo do Profeta e nós vamos ver como essa fi xação se operou.


As diferenças que separam, a esse respeito, a última porta da Revelação


das duas primeiras não abrangem, de modo algum, no que é essencial, questões


de data que certas pessoas colocam sistematicamente em primeiro lugar, sem


dar importância às circunstâncias que presidiram o estabelecimento dos textos


da Revelação judeu-cristã e da Revelação Alcorânica, assim como não consideram


as circunstâncias da transmissão do Alcorão ao Profeta. Admite-se que um


texto do século VII de nossa era tinha mais chances de nos chegar não alterado,


que outros textos que podem ter até uma quinzena de séculos de antiguidade


suplementar. A observação é exata, mas ela não constitui uma explicação sufi -


ciente. Ela é, sobremaneira, feita para encontrar uma desculpa às modifi cações


dos textos judeu-cristãos, ao longo das idades, mais do que para sublinhar que


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o texto alcorânico, mais recente, se arriscaria menos que os primeiros a ser


alterado pelos homens.


Para o Antigo Testamento, a pluralidade dos autores para a mesma narração


e as revisões dos textos efetuados, por alguns livros, em diversas épocas


da era pré-cristã, são outras tantas causas da inexatidão e de contradições. Para


os Evangelhos, do qual ninguém pode afi rmar que eles contêm a relação sempre


fi el da Palavra de Jesus, ou uma narração de seus atos rigorosamente conforme a


realidade, vimos que as redações sucessivas dos textos davam a perceber a falta


de autenticidade. Além do mais, seus autores não são testemunhas oculares.


É preciso sublinhar igualmente a distinção que deve ser feita entre o


Alcorão, Livro da Revelação escrita, e os Hadiths, compilações das narrações


dos atos e palavras de Muhammad. Alguns dos companheiros do Profeta começaram


a redigi-los depois de sua morte; o erro humano, podia se insinuar.


Sua coleção teve de ser retomada mais tarde e submetida à crítica mais séria,


de sorte que, na prática, é a esses documentos, muito posteriores à morte de


Muhammad, que se dá o maior crédito. Como os textos dos Evangelhos, eles


têm uma autenticidade variável. Assim como nenhum Evangelho foi fi xado no


tempo de Jesus (eles foram todos escritos bem depois do fi m de sua missão


terrestre), nenhuma compilação de Hadiths teve seu texto ligado ao tempo do


Profeta.


Para o Alcorão, dá-se o contrário. O texto foi simultaneamente citado de


cor, a medida de sua Revelação, pelo Profeta pelos crentes em torno dele, e fi -


xado por escrito pelos escribas e pelos que o cercavam. De início, ele apresenta,


por consequência estes dois elementos de autenticidade que não possuem os


Evangelhos. Ele será assim até a morte do Profeta. A recitação, numa época onde


nem todos escreviam, mas podiam guardar de cor, oferece uma vantagem considerável,


pela pluralidade do controle possível no momento do estabelecimento


do texto. A revelação Alcorânica foi feita pelo Arcanjo Gabriel a Muhammad.


Ela se desenrola por mais de vinte anos na vida do Profeta. Ela começa pelos


primeiros versículos do Capítulo 96, se interrompe então durante três anos e


retoma durante vinte anos, até a morte do Profeta, no ano 632 da era cristã,


seja dez anos antes da Hégira. A primeira Revelação foi a seguinte (Capítulo 96,


Versículos 1-5)51:


51 - Essas palavras emocionaram Muhammad. Veremos mais adiante sobre sua interpretação,


em ligação, em par􀆟 cular, com o fato de que Muhammad não sabia nem ler e


escrever nesta época.


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“Lê, em nome do teu Senhor Que criou; Criou o homem de algo que se agarra (coágulo).


Lê, que o teu Senhor é Generosíssimo, Que ensinou através a pena, Ensinou ao homem o


que este não sabia.”


O professor Hamidullah fez observar, na introdução de sua tradução do


Alcorão, que um dos temas desta primeira Revelação era “O elogio da pena


como meio do conhecimento humano” e que assim explicaria “o cuidado do


Profeta pela conservação do Alcorão por escrito”.


Os textos estabelecem formalmente que, bem antes que o Profeta tenha


deixado Meca por Medina (quer dizer, bem antes da Hégira), o texto alcorânico


já revelado estava fi xado por escrito. Constatar-se-á que o Alcorão merece


crédito. Ora, sabemos que Muhammad e os crentes ao seu redor tinham o


costume de recitar de memória o texto revelado. Será, portanto, inconcebível


que o Alcorão pudesse fazer alusão a fatos que não tivessem correspondido à


realidade, quando eles eram muito facilmente controlados pelos acompanhantes


do Profeta, junto dos autores da transcrição.


Quatro capítulos pré-hegirianos fazem alusão à redação do Alcorão antes


que o Profeta tivesse deixado Meca, em 622 (Capítulo 80, versículos 11-16):


“Qual! Em verdade, (o Alcorão) é uma mensagem de advertência. Quem quiser, pois, que


preste atenção. (Está registrado) em páginas honoráveis, Exaltadas, purifi cadas, Por mãos


de escribas, Nobres e retos.”


Yusuf Ali escreveu, nos seus comentários de sua tradução do Alcorão de


1934, que, no momento da Revelação deste capítulo, existiam quarenta e dois


ou quarenta e cinco outros entre as mãos dos muçulmanos de Meca (sobre um


total de cento e catorze).


- Capítulo 85, Versículos21-22:


“Sim, este é um Alcorão Glorioso, Inscrito em uma Tábua Preservada.”


- Capítulo 56, Versículos 77-80:


“Este é um Alcorão honorabilíssimo, Num Livro bem guardado, Que não tocam, senão os


purifi cados! É uma revelação do Senhor do Universo.”


- Capítulo 25, Versículo 5:


“E afi rmam: São fábulas dos primitivos que ele mandou escrever. São ditadas a ele, de


manhã e à tarde!”


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Trata-se aqui de uma alusão às acusações levantadas pelos adversários do


Profeta, que o tratavam de impostor. Eles propagavam que lhe ditavam histórias


da Antiguidade, que Muhammad escrevia ou fazia escrever (o sentido da palavra


é discutível, mas é preciso lembrar que Muhammad era analfabeto). Não


importa o que seja, o versículo faz alusão a esse fato, por escrito, revelando os


adversários de Muhammad.


Um capítulo posterior à Hégira faz uma menção dessas folhas sobre as


quais são inscritas as prescrições divinas:


- Capítulo 98, Versículos 2-3:


“Um Mensageiro de Deus, que lhes recitasse páginas purifi cadas, Que contivessem escrituras


corretas.”


Assim, o Alcorão informa ele mesmo sobre sua colocação por escrito da


vida do Profeta. Sabemos que Muhammad tinha ao seu redor muitos escribas,


dos quais o mais célebre, Zaid Ibn Thabit, deixou seu nome à posteridade.


No prefácio de sua tradução do Alcorão (1971), o professor Hamidullah


descreve bem as condições em que a transcrição do texto alcorânico se efetuou


até a morte do Profeta:


“As fontes estão de acordo para dizer que todas as vezes que um fragmento


do Alcorão era revelado, o Profeta chamava um dos seus companheiros


letrados, e lhe ditava, com precisão, o lugar exato do novo fragmento no conjunto


já recebido...” As compilações esclarecem que, depois do ditado, Muhammad


ordenava ao escriba que lhe lesse o que havia anotado, para poder corrigir


as defi ciências, se as houvesse.


Uma outra célebre compilação nos diz que o Profeta recitava, cada ano


no mês do Ramadan, diante de Gabriel, todo o Alcorão (revelado até então)..., e


que o Ramadan que precedeu sua morte, Gabriel o fez recitar duas vezes... Sabese


que, desde a época do Profeta, os muçulmanos tomaram o hábito da vigília,


no mês do Ramadan, por ofícios super-rogativos, recitando o Alcorão todo,


inteiro. Muitas fontes acrescentam que, nessa última colocação, seu escriba Zaid


estava presente. Outros falam de numerosas outras personagens também.


Serviram-se, para esse primeiro registro, de objetos muito variados: pergaminho,


couro, pedaços de pau, omoplatas de camelos, pedras moles para


gravar etc.


132





Mas, ao mesmo tempo, Muhammad recomendou que os fi éis aprendessem


de cor o Alcorão, o que eles fi zeram para todo ou parte do texto, que era


recitado durante as preces. É assim que houve os Hafi zun que conheciam todo


o Alcorão de cor e o propagavam. O duplo método de conservação de texto


pela escritura e por memória se revelou muito precioso.


Pouco tempo depois da morte do Profeta (632), seu sucessor, Abu Bakr,


primeiro califa do Islam, ordenou, ao antigo primeiro escriba de Muhammad,


Zaid Ibn Thabit. preparar uma cópia, o que ele fez. Sob a iniciativa de Omar (futuro


segundo califa), Zaid consultou toda a documentação que ele pôde coletar


em Medina: testemunhos dos Hafi zun, cópias do Livro feitas sobre diversos


assuntos e pertencentes a particulares, tudo isso para evitar todo erro possível


de transcrição. Obtém-se assim, uma cópia muito fi el do Livro.


As fontes nos informam que, a seguir, o Califa Omar, sucessor de Abu


Bakr em 634, reuniu tudo em um só volume (Mushaf), que ele conservou e


doou, quando morreu, à sua fi lha Hafsa, viúva do Profeta.


O terceiro califa do Islam, Uthman, que exerceu seu califado de644 a


655, encarregou uma comissão de especialistas de elaborar a grande recensão


que traz seu nome. Ela controlou a autenticidade do documento estabelecido


sob Abu Bakr e em posse, até então, de Hafsa. A comissão consultou os muçulmanos


que conheciam o texto de cor. A crítica da autenticidade do texto


se operou de uma maneira extremamente rigorosa. A concordância dos testemunhos


foi julgada necessária para destacar o menor versículo que pudesse


se prestar à discussão: sabemos, com efeito, que alguns versículos do Alcorão


podem corrigir outros, no que concerne às prescrições, o que se explica perfeitamente


quando lembramos que o apostolado do Profeta alongou-se por vinte


anos, em números redondos. Chegou-se, assim, a um texto em que a ordem dos


capítulos refl etia aquela - pensamos hoje - que tinha seguido o Profeta, na sua


recitação completa do Alcorão durante o Mês do Ramadan, como vimos mais


acima.


Poderíamos interrogar sobre os motivos que conduziram os três primeiros


califas, Uthman em particular, a elaborar as coleções e recensões do texto.


Eles são simples: a expansão do Islam foi de uma extrema rapidez em todos os


primeiros decênios que se seguiram à morte de Muhammad, e esta expansão se


fez no meio de povos dos quais muitos possuíam línguas que não eram o árabe.


Foi preciso tomar precauções indispensáveis para se assegurar a propagação do


texto na sua pureza original: a recensão de Uthman teve esse objetivo.


133





Uthman enviou alguns exemplares do texto dessa recensão ao centro do


Império Islâmico e é assim que, em nossos dias existem, segundo o professor


Hamidullah, algumas cópias que se atribuem a Uthman, a Tashkent e a Istambul.


A parte algumas eventuais falhas de cópia, as peças mais antigas, conhecidas em


nossos dias e reencontradas em todo o mundo islâmico, são idênticas, dando-se


o mesmo para as peças que existem na Europa (na Biblioteca Nacional de Paris,


há alguns fragmentos datando, segundo os especialistas, dos séculos VIII e IX da


era cristã, isto é, dos séculos II e III da Hégira). A profi ssão dos textos antigos


concorda, com mínimas variantes, que não mudam em nada o sentido geral do


texto, se o contexto admite, às vezes, muitas possibilidades de leitura, pelo fato


de que a escritura antiga era mais simples que a atual52.


Os capítulos, em número de cento e catorze, foram classifi cados por


ordem de extensão decrescente, com algumas exceções, entretanto. A cronologia


da Revelação não foi então respeitada. É reconhecida, entretanto, na grande


maioria dos casos. Um número importante de relatos é evocado em vários lugares


do texto, o que dá, às vezes, lugar a algumas repetições. Muito comum uma


passagem juntar detalhes a uma narração relatada incompletamente em outra


parte. E tudo o que pode ter relação com a ciência moderna está, como para


muitos dos assuntos tratados no Alcorão, repartindo no Livro sem nenhuma


aparência de classifi cação.


A CRIAÇÃO DOS CÉUS E DA TERRA


- Diferenças e Analogias com a Narração Bíblica -


Diferente do Antigo Testamento, o Alcorão não oferece narração de


conjunto da criação. Em lugar de uma narração contínua, encontram-se, em


numerosos lugares do Livro, algumas passagens evocando alguns de seus aspectos


e dando mais ou menos precisão sobre os acontecimentos sucessivos


que os marcaram. Para se ter uma ideia clara da maneira pela qual esses últimos


são apresentados, é preciso, portanto, reunir os fragmentos esparsos em um


número importante de capítulos.


52 - A falta de pontos diacrí􀆟 cos poderia, por exemplo, fazer ler um verbo na voz a􀆟 va ou


na passiva e, em certos casos, no masculino ou no feminino, mas, frequentemente, não


se prestava muito a consequência importante: e o contexto restabelecia o sen􀆟 do em um


grande número de casos.


134





Essa disseminação no Livro de evocações de um mesmo assunto não é


particular ao tema da criação. Muitos dos grandes assuntos são assim tratados


no Alcorão, tratem-se de fenômenos terrestres ou celestes ou de questões


concernentes ao homem, que interessam ao cientista. Para cada um deles, um


mesmo trabalho de coleção de versículos foi empreendido.


Para muitos dos autores europeus, a narração alcorânica da criação é


muito vizinha da narração bíblica e lhes apraz apresentar as duas narrações


paralelamente. Acho que essa concepção é errônea pois existem algumas dissemelhanças


evidentes. Sobre questões que não são acessórias do ponto de vista


científi co, descobriu-se no Alcorão afi rmações das quais se procura inutilmente


o equivalente na Bíblia. Esta contém desenvolvimento que não tem equivalentes


no Alcorão.


Algumas analogias aparentes entre os dois textos são bem conhecidas.


Entre elas, a numeração das fases sucessivas da criação é, à primeira vista, idêntica:


aos seis da Bíblia corresponderiam os seis dias do Alcorão. Mas, em realidade,


o problema é mais complexo e merece maior atenção.


OS SEIS PERIODOS DA CRIAÇÃO


A narração bíblica53 evoca sem a menor ambiguidade a criação em seis


dias seguidos de um dia de descanso, o sábado, por analogia com os dias da


semana. Verifi cou-se que essa maneira de narração pelos sacerdotes do século


VI A.C. atendia às intenções de exortação à prática do Sabat: devendo todo


judeu, no fi m do sábado, descansa54 como o Senhor havia feito depois de haver


trabalhado durante os seis dias da semana.


Assim compreendida pela Bíblia, a palavra “dia” defi ne o intervalo de tempo


compreendido entre dois sucessivos nascer do sol ou dois sucessivos pôr do


sol para um habitante da Terra. O dia defi nido desta maneira é o dia da rotação


da Terra sobre si mesma. É muito evidente que não se pode, em plena lógica,


falar de “dias” num sentido assim defi nido, enquanto que o mecanismo que


53 - Narração bíblica, que é tratada aqui, é a narração da qual falamos na primeira parte


desta obra; a narração Yahvista, condensada em algumas linhas no texto atual da Bíblia, é


muito insignifi cante para que o tomemos aqui em consideração.


54 - “Sabat” quer dizer “repousar” em hebreu.


135





lhe vai provocar o aparecimento - isto é, a existência da Terra e sua rotação ao


redor do Sol - não estava ainda estabelecido nos primeiros estágios da criação,


segundo a narração bíblica. Esta impossibilidade foi sublinhada, na primeira


parte deste livro.


Referindo-se aos textos da maioria das traduções do Alcorão, lê-se - por


analogia com o que nos informa a Bíblia - que, para a Revelação islâmica, o


processo da criação se desenrola igualmente num período de seis dias. Não poderiam


ser censurados os tradutores por tomarem a palavra árabe, no sentido


mais corrente. É assim que as traduções o exprimem comumente e podemos


ler no Alcorão, no Versículo 54 do Capítulo 7:


“Vosso Senhor é Deus, Que criou os céus e a terra em seis dias”


Pouco numerosas são as traduções e comentários do Alcorão, que


fazem notar que a palavra “dias” deverá ser compreendida como signifi cando


períodos. Sustentou-se, aliás, que se os textos alcorânicos sobre a criação, dividiam


suas fases em “dias”, era com a intenção deliberada de retomar aquilo em


que todos acreditavam, na Aurora do Islam, entre os judeus e os cristãos, e de


não ferir frontalmente uma crença tão largamente difundida. Com efeito, e


sem rejeitar absolutamente esta maneira de ver, não se pode considerar mais de


perto o problema e examinar os sentidos possíveis que pode ter, no Alcorão


mesmo e mais geralmente na linguagem da época, a palavra que numerosos


comentadores continuam traduzindo por yawn, no plural ayyam em árabe55.


Seu sentido mais corrente é dia, mas precisamos bem que ele tende a


designar mais a claridade do dia que a duração do tempo entre um pôr do sol


e o do dia seguinte. O plural ayyam pode signifi car não somente dias mas ainda


longa duração, período de tempo não fi xado (mas sempre longo). O sentido


de “período de tempo”, que pode ter a palavra, encontra-se em outra parte do


Alcorão. É assim que lemos:


- Capítulo 32, Versículo 5:


“...em um dia (yawm) cuja duração será de mil anos, de vosso cômputo.”


Nota-se que o versículo que precede o versículo 5 evoca precisamente a


criação em seis períodos.


55 - Encontraremos na úl􀆟 ma página desta obra a correspondência entre os caracteres


la􀆟 nos e os caracteres árabes.


136





- Capítulo 70, Versículo 4:


“... em um período de tempo (yawm) cuja medida é de 50.000 anos”.


O fato de que a palavra yawm podia designar um período de tempo,


completamente diferente daquele a que nós damos o sentido de dia, havia


chocado os comentadores mais antigos que não possuíam naturalmente o conhecimento


que nós temos da duração das fases da formação do universo. É


assim, que, no século XVI D.C., Abu Al-Sued, que não podia ter noção do dia


difundida pela astronomia em função da rotação da Terra, pensava que era preciso,


para a criação, considerar uma divisão não em dias no sentido como nós


entendemos habitualmente, mas em “acontecimento” (em árabe nawbat).


Os comentadores modernos retomam essa interpretação. Yusuf Ali


(1934) insiste em seu comentário de cada versículo, que trata das fases da


criação, sobre a necessidade de tomar as palavras algures interpretadas com o


sentido de “dia”, como signifi cando, em realidade, “longos períodos”, “idades”.


Pode-se, portanto, admitir que o Alcorão considera, para as etapas da


criação do mundo, longos períodos de tempo, que ele calcula em número de


seis.


Certamente, a ciência moderna não admitiu aos homens estabelecer que


as diversas etapas dos processos complexos, que culminaram na formação do


universo, eram em número de seis, mas ela formalmente demonstrou que se


tratava de muito longos períodos de tempo, ao lado dos quais os “dias”, tais


como nós os concebemos seriam, uma derrisão.


Uma das passagens mais longas do Alcorão, tratando da criação, a evoca,


justapondo uma narração dos acontecimentos terrestres e uma narrativa


de acontecimentos celestes. Trata-se dos versículos 9-12 do Capítulo 41. (Deus


dirigindo-se ao Profeta):


“Dize-lhes (mais): Renegaríeis, acaso, Quem criou a terra em dois dias, e Lhe atribuireis


rivais? Ele é o Senhor do Universo! E sobre ela (a terra) fi xou fi rmes montanhas, e


abençoou-a e distribuiu, proporcionalmente, o sustento aos necessitados, em quatro dias.


Então, abrangeu, em Seus desígnios, os céus quando estes ainda eram gases, e lhes disse, e


também à terra: Juntai-vos, de bom ou de mau grado! Responderam: Juntamo-nos voluntariamente.


Assim, completou-os, como este céus, em dois dias, e a cada céu assinalou a


137





sua ordem. E adornamos o fi rmamento terreno com luzes, para que servissem de sentinelas.


Tal é o decreto do Poderoso, Sapientíssimo.”


Esses quatro versículos do Capítulo 41 apresentam vários aspectos sobre


os quais voltaremos: estado gasoso inicial da matéria celeste e a defi nição toda


simbólica de céus em número de sete. Veremos o sentido da cifra. Simbólico


é igualmente o diálogo entre, de um lado Deus e, de outro, os céus e a terra


primitivos: aqui, trata-se apenas de exprimir a submissão às ordens divinas dos


céus e da terra uma vez formados.


As críticas viram nessa passagem uma contradição com o enunciado de


seis períodos da criação. Adicionando-se os dois períodos da formação da terra,


os quatro períodos de repartição dessas substâncias por seus habitantes e os


dois períodos da formação dos céus, atingir-se-ia o número de oito períodos, o


que estaria em contradição com os seis períodos defi nidos mais acima.


Com efeito, o texto pelo qual o homem é convidado a refl etir sobre a


Onipotência divina, partindo da terra para concluir sua refl exão a proposito dos


céus, apresenta duas partes que são articuladas pela palavra árabe thumma traduzida


por “ademais”, mas que quer dizer, de preferência, “em seguida”, ou “depois,


além disso”. Pode, portanto, implicar um sentido de sucessão, aplicando-se


a uma sucessão de acontecimentos ou a uma sucessão na refl exão do homem


sobre os acontecimentos evocados aqui. Pode tratar-se, também, de uma simples


menção de acontecimentos que se justapuseram sem intenção de introduzir um


sentido de sucessão entre eles.


Não importa o que seja, os períodos da criação do céu podem perfeitamente


coincidir com os dois períodos da criação da terra: examinar-se-á, um


pouco mais adiante, como é evocado no Alcorão o processo da formação do


universo e veremos como ele se aplica conjuntamente aos céus e à terra, em


conformidade com os conceitos modernos. Perceber-se-á, então, a perfeita legitimidade


dessa maneira de conceber uma simultaneidade nos acontecimentos


evocados aqui.


Parece não haver oposição entre a passagem citada aqui e a concepção


decorrente de outros dois textos do Alcorão sobre a formação do mundo em


seis fases ou períodos.


138





O ALCORÃO NÃO DEFINE UMA ORDEM


DE SUCESSÃO NA CRIAÇÃO DOS CEUS E DA TERRA


Nas duas passagens do Alcorão que acabam de ser citadas, menciona-


-se, em um versículo, a criação dos céus e da terra (Capítulo 7, Versículo 54), e,


num outro lugar, a criação da terra e dos céus (Capítulo 41, Versículos 9 a 12).


O Alcorão parece, portanto, defi nir uma ordem na criação dos céus e da terra.


Existe um pequeno número de versículos nos quais a terra é mencionada


em primeiro lugar, como no Capítulo 2, versículo 29, e no Capítulo 20,


Versículo 4, em que a alusão é feita a “aquele que criou a terra e os céus”. Há,


ao contrário, versículos muito mais numerosos nos quais são os céus que são


mencionados antes da terra (Capítulo 7, Versículo 54; Capítulo 10, Versículo


3; Capítulo 11, Versículo 7; Capítulo 25, Versículo 59; Capítulo 32, Versículo 4;


Capítulo 50, Versículo 38; Capítulo 57, Versículo 4;Capítulo 79, Versículos 27 a


33; Capítulo 91, Versículos 5-10).


A bem da verdade, posto à parte o Capítulo 79, nenhuma passagem


do Alcorão fi xa de maneira formal uma sucessão: é uma simples conjunção


de coordenação (wa) que tem o sentido do “et” em francês, que reúne os dois


termos, ou então é a palavra thumma, já vista, que, na passagem citada acima


pode indicar uma simples justaposição ou mesmo sucessão.


Pareceu-me que existia uma só passagem no Alcorão em que a sucessão


é nitidamente estabelecida entre os diversos acontecimentos da criação. São os


Versículos 27 - 33 do Capítulo 79:


“Quê! Porventura a vossa criação é mais difícil ou é a do céu, que Ele erigiu? Elevou a sua


abóbada e, por conseguinte, a ordenou, Escureceu a noite e, (consequentemente) clareou o


dia; E depois disso dilatou a terra, Da qual fez brotar a água e os pastos; E fi xou, fi rmemente,


as montanhas, Para o proveito vosso e do vosso gado.”


Essa enumeração das benfeitorias terrestres de Deus, destinadas aos homens,


expressa em uma linguagem que convém aos agricultores ou aos nômades


da península Arábica, é precedida de um convite a refl etir sobre a criação do


céu. Mas a evocação do estágio em que Deus estende a terra e a torna cultivável


é situada no tempo exatamente depois que a alternância dos dias e das noites


é realizada. Há, portanto, aqui, evocação de dois grupos de fenômenos, uns celestes


e outros terrestres, articulados no tempo. A menção que é feita implica



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