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ANTIGO TESTAMENTO


RESUMO GERAL


Quem é o autor do Antigo Testamento?


Quantos leitores do Antigo Testamento, a quem esta pergunta seria feita,


não dariam respostas que repetem o que eles leram na introdução de sua Bíblia,


a saber que esses livros têm todos Deus por autor, muito embora eles tenham


sido escritos por homens inspirados pelo Espírito Santo.


Ora o autor da apresentação da Bíblia limita-se a instruir a seu leitor


com a ajuda dessa breve noção que corta toda interrogação, ora ele acrescenta


um corretivo, advertindo que os detalhes puderam, em consequência, ter sido


acrescentados por homens ao texto primitivo, mas que, contudo, o caráter litigioso


de uma passagem não altera a “verdade” geral que decorre dela. Insiste-se


sobre essa “verdade” pela qual se responsabiliza o Magistério da Igreja, assistido


pelo Espírito Santo, o único suscetível de esclarecer os fi éis sobre esses pontos.


A Igreja promulgou, desde os concílios do século IV, a lista dos Livros Santos,


lista que foi confi rmada para formar o que se chama o Cânon pelos Concílios


de Florença (1441), Trento (1546) e Vaticano (1870). Recentemente, o último concílio


do Vaticano II, depois de tantas encíclicas, publicou sobre a Revelação um


texto da primeira importância, laboriosamente esclarecido durante três anos


(1962-1965). A imensa maioria dos leitores da Bíblia acha essas informações


reconfortantes, nas introduções das edições modernas contenta-se com as garantias


de autenticidade dadas no decurso dos séculos, e quase não pensa que


se possa discutir o assunto.


Mas quando se refere às obras escritas por religiosos que não são destinadas


à grande vulgarização, percebe-se que a questão da autenticidade dos


livros da Bíblia é muito mais complexa que se havia pensado “a priori”. Se se


consulta, por exemplo, a publicação moderna, em fascículos separados, da Bíblia


traduzida em francês sob a direção da Escola Bíblica de Jerusalém1, o tom


aparece muito diferente, e se percebe que o Antigo Testamento, como o Novo,


levanta problemas dos quais os autores dos comentários não esconderam muito


os elementos que suscitam a controvérsia.


1 - Edição do Cerf, Paris.


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Encontram-se, igualmente, dados muito precisos nos estudos mais condensados


e de uma grande objetividade, como aquela do professor Edmond Jacob:


o ANTIGO TESTAMENTO2. Este livro dá uma perfeita visão do conjunto.


Muitos ignoram que havia na origem, como assinala Edmond Jacob, uma


pluralidade de textos e não um texto único. Lá pelo século III A.C, havia, pelo


menos, três formas do texto hebreu da Bíblia: o Texto Massorético, o que serviu,


ao menos em parte, para a tradução grega e o Pentateuco Samaritano. No


século I A.C, tentou-se estabelecer um texto único, mas será preciso esperar até


um século D.C., para que o texto bíblico seja fi xado.


Se tivéssemos essas três formas do texto, as comparações seriam possíveis


e se chegaria, quem sabe, a uma opinião do que poderia ter sido o original,


mas infelizmente não se tem a mínima ideia. Com exceção dos rolos da gruta de


Qumran, datando da época pré-cristã próxima de Jesus, um papiro do Decálogo


do século II D.C., apresentando variações com o texto clássico, alguns fragmentos


do século V D.C. (Géniza do Cairo), o texto em hebreu mais antigo da Bíblia


é do século IX d.C.


Em língua grega, a Septuaginta será a primeira tradução. Datando do século


III A.C, ela foi realizada pelos judeus de Alexandria. Sobre este texto é que


se apoiarão os autores do Novo Testamento. Ele terá autoridade até, o século


VII D.C. Os textos gregos de base geralmente utilizados no mundo cristão são


os manuscritos conservados sob o nome de CODEX VATICANO, da cidade do


Vaticano, e o CODEX SINAITICUS, do British Museum de Londres, e que datam


do Século IV D.C. Em Latim, São Jerônimo teria feito um texto a partir dos


documentos hebreus nos primeiros anos do Século V D.C. É a edição chamada


mais tarde VULGATA, em razão de sua difusão universal depois do século VII


da era cristã.


De memória, citemos as versões Aramaicas, Siríacas (Peshitta), que só são


parciais.


Todas essas versões permitiram aos especialistas chegar à confecção dos


textos que se chamam “médios”, espécie de compromisso entre as versões


diferentes. Estabeleceu-se igualmente as compilações em diversas línguas, justapostas,


dando lado a lado as versões hebraica, grega, latina, siríaca, aramaica e


mesmo árabe. Assim é a célebre Bíblia de Walton (Londres, 1657). Para completar,


acrescentaremos que, entre as diversas Igrejas cristãs, as concepções bíblicas


divergentes fi zeram com que nem todas aceitassem exatamente os mesmos


2 - Presses Universitaires de France. Coll. Que Sais-Je?


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livros e que elas tivessem até hoje, numa mesma língua, as mesmas ideias sobre


a tradução. Obra de unifi cação em fase de acabamento, a tradução ecumênica


do Antigo Testamento, realizada por numerosos especialistas católicos e protestantes,


deveria chegar a um texto-síntese.


Assim, parece considerável a parte humana no texto do Antigo Testamento.


E verifi ca-se, sem difi culdade, como, de versão, de tradução em tradução,


com todas as correções que resultam fatalmente, o texto original pôde ser


transformado em mais de dois milênios.


ORIGEM DA BÍBLIA


Antes de ser uma compilação de livros, foi uma tradição popular que


não teve outro apoio a não ser a memória humana, agente exclusivo da origem


da transmissão das ideias. Esta tradição foi cantada.


“Numa fase elementar, escreveu E. Jacob, todo povo canta; em Israel


como em outros lugares, a poesia precedeu a prosa. Israel cantou muito e bem;


levada pelas circunstancias de sua história no auge do entusiasmo tanto quanto


nos abismos do desespero, participando com intensidade de tudo que lhe ocorria,


pois tudo tinha aos seus olhos um sentido, ele deu a seu canto uma grande


variedade de expressão”. Cantou-se sob pretextos os mais diversos, e E. Jacob


os relaciona em certo número dos quais os cantos acompanhadores se reencontram


no Antigo Testamento: cantos da refeição, canto da celebração do fi m


das colheitas, cantos acompanhando o trabalho como célebre canto do Poço


(Números, 21:17), cantos de casamento como aquele do Cântico dos Cânticos,


cantos de luto, cantos de guerra extremamente numerosos na Bíblia, entre os


quais o Cântico de Débora (Juízes, 5:1-32), que exalta a vitória de Israel desejada


por Yahveh no fi m de uma guerra Santa que Yahveh faz, ele mesmo. (Números,


10:35): “Quando a Arca (da aliança) partia, Moisés dizia: Levanta-te, Senhor e


dispersados sejam os teus inimigos! Que fujam diante de Tua Face aqueles que


Te Odeiam!”


São ainda as Máximas e os Provérbios (Livro dos Provérbios, Provérbios e


Máximas dos Livros Históricos), as palavras de bênção e de maldição, as leis que


os Profetas editam aos homens depois de haver recebido seu mandato divino.


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E. Jacob nota que essas palavras eram transmitidas seja por via familiar,


seja através dos santuários, sob a forma de narração da história do povo eleito


por Deus. Esta tornou-se, logo, uma fábula como o Apólogo de Joatão (Juízes,


9:7-21) onde “as árvores tentam ungir para si um rei e dirigem-se alternativamente


à oliveira, à fi gueira, à videira, ao espinheiro”, o que permite a E. Jacob


escrever “... animada pela função fabulista da narração, não se encontrou embaraço


sobre assuntos e épocas das quais a história era mal conhecida”, e concluir:


“E provável que o que o Antigo Testamento conta a respeito de Moisés


e dos Patriarcas não corresponda, a não ser aproximadamente, ao desenvolvimento


histórico dos fatos, mas os narradores souberam, já no estágio de


transmissão oral, concretizar tanta graça e imaginação para reler entre eles os


episódios mais diversos, que eles conseguiram apresentar como uma história


em suma provável para os espíritos críticos, o que se passou nas origens do


mundo e da humanidade”.


É muito oportuno pensar que depois da fi xação do povo judeu em


Canaã, isto é, no fi m do século XIII A.C, a escrita é empregada para transmitir


e conservar a tradição, mas sem um total rigor, mesmo quando se tratava do


que parece aos homens merecer a maior perenidade, isto é, as leis. Entre esses


últimos, a lei à qual se atribuiu a escrita pela mão de Deus, o Decálogo, é transmitida


no Antigo Testamento segundo duas versões: Êxodo (20:1-21) e Deuteronômio


(5:1-30). O espírito é o mesmo, mas as variações são patentes. Cuida-se


de fi xar uma documentação importante: contratos, cartas, listas de pessoas


(juízes, altos funcionários das vilas, listas genealógicas), listas de oferendas, listas


de espólios. Assim foram constituídos os arquivos que trouxeram uma documentação,


quando da redação seguinte das obras defi nitivas, que chegaram


livros que nós possuímos. Assim, em cada livro, os gêneros literários diversos


são misturados: aos especialistas cabe pesquisar os motivos dessa reunião de


documentos originais.


É interessante aproximar esse processo de constituição de conjunto


disparatado, que é o Antigo Testamento, na base inicial da tradução oral do que


pôde se passar sob outros céus e em outros tempos quando do nascimento de


uma literatura primitiva.


Tomemos, por exemplo, o nascimento da literatura francesa na época


do reino dos Francos. A mesma tradição oral preside, no início, a conservação


dos grandes feitos: as guerras que são sempre guerras de defesa da cristandade,


dramas diversos nos quais se ilustram os heróis, os quais, séculos mais tarde,


vão inspirar trovadores, cronistas, autores de “ciclos” diversos. Assim, nascerão,


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a partir do século XI da era cristã, as canções de gesta, onde o real se mistura


com a lenda, e que vão constituir o primeiro monumento de uma época. Célebre


entre todas é a Canção de Rolando, canto romanceado de um grande feito


de armas no qual se ilustra Rolando, comandando a retaguarda do Imperador


Carlos Magno, na volta de uma expedição espanhola. O sacrifício de Rolando


não é um episódio inventado pelas necessidades da narrativa. Situa-se em 15 de


agosto de 778; tratava-se, com efeito, de um ataque pelos montanheses bascos.


A obra literária não é apenas legendária; ela tem uma base histórica, mas ela não


seria tomada em conta pelos historiadores.


O paralelo feito entre o nascimento da Bíblia e uma tal literatura profana


parece corresponder muito exatamente a uma realidade. Ela não visa, de modo


algum, a rejeitar no conjunto, como fazem tantos negadores sistemáticos da


ideia de Deus, o texto bíblico possuído hoje entre os homens no mercado


das coleções mitológicas. Pode-se perfeitamente crer na realidade da criação,


na entrega dos mandamentos, a Moisés por Deus, na intervenção divina nos


negócios humanos, no tempo do Rei Salomão, por exemplo, pode-se pensar que


a essência desses fatos nos é narrada, sempre considerando que o detalhe das


descrições deve ser submetido a uma crítica rigorosa, tamanhas são as participações


humanas na transcrição por escrito das tradições orais originais.


OS LIVROS DO ANTIGO TESTAMENTO


O Antigo Testamento é uma coleção de obras de tamanho muito desigual


e de gêneros diversos, escritos durante mais de nove séculos em várias


línguas, a partir de tradições orais. Muitas dessas obras foram corrigidas e


completadas, em função dos acontecimentos ou em função de necessidades


particulares, em épocas às vezes bem distantes umas das outras.


É verdade que a eclosão dessa abundante literatura situa-se no início da


monarquia israelita, pelo século XI A.C, a época onde aparecia na sociedade real


o corpo de escribas, personagens cultos cujo papel não se limitava à escrita.


Dessa época podem datar os primeiros escritos muito parciais, citados no capítulo


precedente, escritos em que havia um interesse particular a ser fi xado pela


escritura: certos cantos que foram citados acima, os oráculos proféticos de Jacó


e de Moisés, o Decálogo e, mais geralmente, os textos legislativos que antes da


formação de um direito estabeleciam uma tradição religiosa. Todos esses textos


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constituem os pedaços dispersos aqui e ali, nas diversas compilações do Antigo


Testamento.


Um pouco mais tarde, talvez ao longo do século X A.C, é que teria sido


redigido o texto dito “Yahvista”3 do Pentateuco que vai formar a estrutura


dos cinco primeiros livros chamados de Moisés. Mais tarde, acrescentar-se-á a


esse texto a versão chamada “Elohista”4 e a versão dita “Sacerdotal”5. O texto


“Yahvista” inicial trata do período das origens do mundo até a morte de Jacó.


Ele emana do reino do sul (Judá).


No fi m do século IX e metade do século VIII A.C, no reino norte (Israel),


se elabora e se difunde a infl uência profética com Elias e Eliseu, dos quais nós


possuímos os livros. É também na época do texto “Elohista” do Pentateuco (que


cobre um período muito mais restrito que o “Yahvista”, pois ele se limita aos


fatos concernentes a Abraão, Jacó e José). Os livros de Josué e dos Juízes datam


desse período.


O século VIII A.C, é o dos profetas escritores: Amós e Oséias em Israel,


e Isaías e Miquéias no reino de Judá.


Em 721 A.C, a tomada da Samária põe fi m ao reino de Israel. O reino


de Judá recebe sua herança religiosa. A compilação dos Provérbios datará


desse período marcado, sobretudo, pela fusão em um só livro dos textos


“Yahvista” e “Elohista” do Pentateuco; assim é constituído o Tora. A redação do


Deuteronômio se situará nessa época.


O Reino de Josias, na segunda parte do século VII A.C, coincidirá com


os inícios do profeta Jeremias, mas sua obra não tomará forma defi nitiva a não


ser um século mais tarde.


Antes do primeiro degredo à Babilônia de 598 A.C, colocam-se o sermão


de Sofonias, o de Naum e o de Habacuque. Ao longo desse primeiro degredo,


Ezequiel já profetiza. Depois será a queda de Jerusalém em 587 A.C, que


marcará o início da segunda deportação, esta se prolongando até 538 A.C.


O livro de Ezequiel, último grande profeta, e profeta do exílio, não será


redigido na sua forma atual a não ser depois de sua morte, por escribas que


serão seus herdeiros espirituais. Esses mesmos escribas retomarão em uma ter-


3 - Assim chamado porque Deus era chamado Yahveh.


4 - Assim chamado porque Deus era chamado Elohim.


5 - Ele provém dos padres do Templo de Jerusalém.


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ceira versão, dita «Sacerdotal», o Gênesis pela parte que se estende da criação


à morte de Jacó. Assim, vão ser inseridos, no meio mesmo dos dois textos


“Yahvista” e “Elohista” da Tora, um terceiro texto de onde se verá mais tarde um


aspecto de suas complexidades nos livros redigidos, aproximadamente quatro e


dois séculos mais tarde. Nessa época, apareceu o Livro das Lamentações.


Sob a ordem de Ciro (a deportação à Babilônia termina em 538 A.C), os


judeus reconquistam a Palestina e o templo de Jerusalém é reconstruído. Uma


atividade profética recomeça, donde os livros de Ageu, de Zacarias, do Terceiro


Isaías, de Malaquias, de Daniel e de Baruch (este escrito em grego).


O período que se segue à deportação é também o dos livros da Sabedoria:


Os provérbios são redigidos defi nitivamente perto de 480 A.C O Eclesiastes


ou Qohêlet data do século III A.C, que é também aquele do Cântico dos


Cânticos, dos dois livros de Crônicas, dos de Esdras e Neemias; o Eclesiástico


ou Sirácida apareceu no Século II A.C, o livro da Sabedoria de Salomão e os


dois livros de Macabeus são redigidos um século A.C Os livros de Ruth, de


Ester e de Jonas são difi cilmente datáveis, como os livros de Tobias e de Judith.


Todas essas indicações são fornecidas sob reserva de remanejamentos seguintes,


porque não é senão cerca de um século A.C, que se deu aos escritos do Antigo


Testamento uma primeira forma que, para muitos, não se tornará defi nitiva


senão no século I d.C..


Assim, o Antigo Testamento aparece como um monumento da literatura


do povo judeu das origens até a era cristã: os livros que o compõem foram redigidos,


completados, revistos entre o século X e o I A.C Não é apenas um ponto


de vista pessoal que é dado aqui sobre a história de sua redação. Os dados


essenciais desse apanhado histórico foram tirados do artigo «Bíblia», pela “Enciclopédia


Universal”6 por J- P. Sandroz, professor das Faculdades Dominicanas


do Saulchoir. Para compreender o que é o Antigo Testamento, é preciso ter na


memória noções perfeitamente estabelecidas em nossos dias por especialistas


altamente qualifi cados.


Uma Revelação está inserida em todos esses escritos, mas nós não possuímos


hoje e o que bem quiseram nos deixar os homens que manipularem os


textos à sua maneira, em função das circunstâncias nas quais eles se encontravam


e das necessidades que eles haviam dê vencer.


Quando se comparam esses dados objetivos àqueles revelados nas diversas


Preliminares da Bíblia, destinadas em nossos dias à vulgarização, constata-se


6 - Ed. 1974, Vol. 3, p. 244-253.


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que os fatos aí são apresentados de uma maneira diferente. Há um silêncio sobre


os fatos fundamentais relativos à redação dos livros, equívocos são mantidos


e desviam o leitor, os fatos são minimizados a ponto de dar uma ideia falsa da


realidade.


Muitas Preliminares ou Introduções das Bíblias disfarçam assim a verdade.


Livros inteiros são reformados em várias reprises (como o Pentateuco); contenta-


se em mencionar que os detalhes puderam ser acrescidos após o corte.


Introduz-se uma discussão a propósito de uma passagem insignifi cante de um


livro, mas silenciam-se fatos cruciais que mereceriam longos desenvolvimentos.


Causa afl ição verem-se mantidas pela vulgarização noções de tal maneira


inexatas sobre a Bíblia.


A TORÁ OU PENTATEUCO


Torá é um nome semítico. A expressão grega que em português, deu


“Pentateuco”, designa uma obra em cinco partes: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números


e Deuteronômio, que vão formar os cinco primeiros elementos da compilação


dos trinta e nove volumes do Antigo Testamento.


Esse grupo de textos trata das origens do mundo até a entrada do povo


judeu em Canaã, terra prometida depois do exílio no Egito, mais exatamente até


a morte de Moisés. Mas a narração desses fatos serve de quadro geral para a


exposição das disposições concernentes à vida religiosa e à vida social do povo


judeu; daí, o nome Lei ou Tora.


O judaísmo e o cristianismo, durante longos séculos, consideraram ser


Moisés mesmo seu autor. Pode ser que tenham se baseado para fazer essa afi rmação


no fato de que Deus tenha dito a Moisés (Êxodo, 17:14): “Escreve isto (a


derrota de Amaleq) para memória no Livro”, ou ainda a propósito do Êxodo


depois do Egito, que “Moisés anotou os lugares de onde eles partiram” (Números,


33:2), ou então que “Moisés escreveu esta lei” (Deuteronômio, 31:9). A partir


do século I A.C, defendia-se a tese segundo a qual todo Pentateuco foi escrito


por Moisés; Flavius, Josephus, Philon de Alexandria a sustentavam.


Hoje, essa tese está absolutamente abandonada. Todos estão de acordo


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sobre este ponto, o que não impede que o Novo Testamento atribua a Moisés


esta paternidade. Com efeito, Paulo, na Epístola aos Romanos (10:5), citando uma


frase do Levítico, afi rma: “Moisés mesmo escreve da justiça que vem da lei...”,


e João no seu Evangelho (5:46-47) diz a Jesus esta frase: “Se Vós tivésseis visto


Moisés, também acreditaríeis em mim; porquanto ele escreveu a meu respeito.


Se, porém, não credes nos seus escritos, como crereis nas minhas palavras?”.


Trata-se aqui de uma redação, o termo grego corresponde ao texto original


(escrito nessa língua) ó “episteute”. Ora trata-se de uma afi rmação totalmente


falsa posta pelo Evangelista na boca de Jesus: o que se segue o demonstra.


Eu atribuo os elementos dessa demonstração a R.P. de Vaux, diretor da


Escola Bíblica de Jerusalém, que fez preceder sua tradução do Gênesis de 1962


de uma Introdução Geral do Pentateuco, contendo valiosos argumentos, indo


ao encontro das afi rmações evangélicas sobre a paternidade da obra em questão.


R.P. de Vaux lembra que “a tradição judaica, que Cristo e os Apóstolos


seguram”, foi aceita até a Idade Média; Aben Esra foi, no século XII, o único


contestador dessa tese. É no século XVI que Carlstadt observa que Moisés não


pôde escrever a narrativa de sua própria morte no Deuteronômio (34:5-12). O


autor cita a seguir obras críticas que negam ser de Moisés ao menos uma parte


do Pentateuco, e sobretudo a obra de Richard Simon, do Oratório, “A História


Crítica do Velho Testamento” (1678) que sublinha as difi culdades cronológicas,


as repetições, as desordens das narrações e as diferenças de estilo do Pentateuco.


O livro foi um escândalo; também não seguimos a argumentação de R.


Simon: “em seus livros de história do começo do Século XVIII, as referências à


alta antiguidade procedem frequentemente do “que Moisés havia escrito.”


Imagina-se o quanto era difícil combater uma lenda forte do apoio de


que Jesus mesmo teria introduzido no Novo Testamento, como nós vimos. Deve-


se à Jean Astruc, médico de Luiz XV, o fato de haver fornecido o argumento


decisivo. Publicando em 1753 suas “Conjunturas sobre as Memorias Originais


das quais parece que Moisés se serviu para compor o livro Gênesis”, chamou a


atenção sobre à pluralidade das fontes.


Ele não foi, sem dúvida, o primeiro afazer essa observação, mas, em todo


caso, teve a coragem de tomar pública uma contestação primordial: dois textos


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marcados cada um por uma particularidade de se atribuir a Deus o nome de


YAHVEH e ELOHIM estavam lado a lado presentes no Gênesis; este último


continha, pois, dois textos justapostos. Eichhorn (1780-1783) fez a mesma descoberta


para os quatro outros livros; depois, Ilgen (1798) percebeu que um dos


dois textos individualizados por Astruc, aquele onde Deus é chamado Elohlm,


deveria ser ele mesmo dividido em dois.


O Pentateuco explodia literalmente.


O Século XIX se empenhou numa pesquisa ainda mais minuciosa das


fontes. Em 1854, mais quatro fontes são admitidas. Dá-se-lhes os nomes de:


Documento Yahvista, Documento Elohista, Deuteronômio, Código Sacerdotal.


Consegue-se atribuir-lhes as idades:


1 - O Documento Yahvista situa-se no século IX A.C (redigido no país


de Judá);


2 - O Documento Elohista será um pouco mais recente (redigido em


Israel);


3 - O Deuteronômio é do século VIII A.C para uns (E. Jacob); da época


de Josias (Século VII A.C), para outros (R.P. de Vaux);


4 - O Código Sacerdotal é da época do exílio ou depois do exíllio,


sécúo VI A.C


Assim, a organização do texto do Pentateuco estende-se, pelo menos,


por três séculos.


Mas o problema é ainda mais complexo. Em 1941, A. Lods distingue três


fontes no Documento Yahvista, quatro no Elohista, seis no Deuteronômio, nove


no Código Sacerdotal, sem contar, escreve R.P. de Vaux, os acréscimos repartidos


entre oito autores.


Em uma data mais recente, chega-se a pensar que «muitas das constituições


ou das leis do Pentateuco tinham paralelos extra bíblicos, muito anteriores


às datas atribuídas aos documentos» e que numerosos relatos do Pentateuco


supunham outro meio - e mais antigo - que aquele de onde teriam originado


esses documentos», o que leva a se interessar pela «formação das traduções».


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O problema aparece então com uma complexidade tal que ninguém mais se


reconhece nele.


A multiplicidade das fontes acarreta discordâncias e repetições numerosas.


R.P. de Vaux dá exemplos dessas “imbricações” de traduções diversas


concernentes à criação, aos descendentes de Caim, ao dilúvio, ao rapto de


José, suas aventuras no Egito; discordâncias de nomes referidos a uma mesma


personagem, apresentações diferentes de acontecimentos importantes.


Assim, o Pentateuco aparece formado de tradições diversas reunidas


mais ou menos diretamente pelos redatores, tendo ora justaposto suas compilações,


ora transformado as narrações num propósito de síntese, mas deixando,


entretanto, aparecer com dúvidas e discordâncias que conduziram os modernos


a uma pesquisa objetiva das origens.


No plano da crítica textual, o Pentateuco oferece, sem dúvida, o exemplo


mais evidente das correções efetuadas pelos homens, em diferentes períodos da


história do povo judeu, das tradições orais e dos textos recebidos de gerações


passadas.


Tendo começado no século X ou IX A.C com a tradição Yahvista que toma a


narração a partir das origens, ele apenas esboçou o destino particular de Israel,


como escreve R.P. de Vaux, para o «recolocar no grande desígnio de Deus, concernente


à humanidade». Ele termina no século VI A.C, pela Tradição Sacerdotal


preocupada com a precisão na citação de datas e genealogias7.


“As raras narrações que esta tradição tem propriamente”, escreve R.P. de


Vaux, “testemunham suas preocupações legalistas: o descanso no sábado no fi m


da criação, a aliança com Noé, a aliança com Abraão e a circuncisão, a compra


da gruta de Machpela8, que dá aos patriarcas um título imobiliário em Canaã.


Lembramos que a tradição Sacerdotal situa-se em torno da deportação


à Babilônia e ao momento da reinstalação na Palestina a partir de 538 A.C Há,


7 - Veremos no próximo capítulo a que erros na redação, aparecendo depois da confrontação


com os dados modernos da ciência, são conduzidos os redatores da versão


Sacerdotal a propósito da an􀆟 guidade do homem sobre a Terra, a situação no tempo e o


desenvolvimento da criação, os erros decorrentes evidentemente das manipulações dos


textos pelos homens.


8 - Conhecida como o túmulo dos Patriarcas em Hebron, na Cisjordânia.


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portanto, um emaranhado de problemas religiosos e de problemas de pura


política”.


Apenas para o Gênesis, a fragmentação do Livro em três fontes principais


é bem estabelecida: R.P. de Vaux, nos comentários de sua tradução, enumera


para cada uma delas as passagens do texto atual do Gênesis que depende dele.


Fundando-se nesses dados podem-se defi nir, não importa para qual capítulo, as


contribuições das diversas fontes.


Para o que concerne, por exemplo, à criação, ao dilúvio e ao período


indo do dilúvio a Abraão, que ocupam os onze primeiros capítulos do Gênesis,


vê-se suceder, cada um por sua vez, dentro da narração bíblica, uma porção de


texto Yahvista e uma porção do texto Sacerdotal; o texto Elohista não está


presente nesses onze primeiros capítulos.


A imbricação dos acréscimos Yahvista e Sacerdotal aparece aqui com


toda clareza. Para a criação até Noé (cinco primeiros capítulos), o arranjo é


simples: uma passagem Yahvista alterna com a passagem Sacerdotal do começo


ao fi m da narração.


Mas, para o dilúvio e especialmente para os capítulos 7 e 8, o corte do


texto segundo as fontes isola passagens muito curtas indo até a uma só frase.


Para um pouco mais de cem linhas do texto francês, passa-se dezessete vezes


de um texto para outro: daí, as improbabilidades e as contradições na leitura


da narração atual. (Ver adiante o quadro que esquematiza esta repartição das


fontes).


Detalhe da divisão do texto Yahvista e do texto Sacerdotal nos capítulos


1 a 11 do Gênesis.


O primeiro número indica o capítulo.


O segundo, entre parênteses, indica o número das frases, às vezes divididas


em duas partes designadas pelas letras a e b.


A letra Y designa o texto Yahvista.


A letra S designa o texto Sacerdotal.


Exemplo: a primeira linha do quadro signifi ca: do Capítulo 1°, frase 1 ao


Capítulo 2, frase 4 a, o texto atual publicado nas Bíblias é o texto Sacerdotal.


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Capítulo Frase Capítulo Frase Texto


1 (1) 2 (4a) S


2 (4b) 4 (26) Y


5 (1) 5 (32) S


6 (1) 6 (8) Y


6 (9) 6 (22) S


7 (1) 7 (5) Y


7 (6) - - S


7 (7) 7 (10) Y (modifi cado)


7 (11) - - S


7 (12) - - Y


7 (13) 7 (16a) S


7 (16b) 7 (17) Y


7 (18) 7 (21) S


7 (22) 7 (23) Y


7 (24) 8 (2ª) S


8 (2b) - - Y


8 (3) 8 (5) S


8 (6) 8 (12) Y


8 (13a) - - S


8 (13b) - - Y


8 (14) 8 (19) S


8 (20) 8 (22) Y


9 (1) 9 (17) S


9 (18) 9 (27) Y


9 (28) 10 (7) S


10 (8) 10 (19) Y


10 (20) 10 (23) S


10 (24) 10 (30) Y


10 (31) 10 (32) S


11 (1) 11 (9) Y


11 (10) 11 (32) S


Que ilustração mais clara poderá dar manipulações da Escritura Bíblica


pelos homens?


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LIVROS HISTÓRICOS


Aborda-se com eles a história do povo judeu depois da entrada na Terra


Prometida (que situamos mais aproximadamente no fi m do século XIII A.C -),


até a deportação à Babilônia, no século VI A.C.


O ponto principal aqui é o que se pode chamar “ponto nacional”, apresentado


como realização da palavra divina. Na narração, aliás, dá-se pouco valor


à exatidão histórica: um livro como o de Josué obedece, antes de tudo, aos


motivos teológicos. A esse respeito, o professor E. Jacob sublinha a contradição


aberta entre a arqueologia e os textos a propósito das pretendidas destruições


de Jericó e de AY.


O livro dos Juízes é centrado na defesa do povo eleito contra os inimigos


que o cercavam e sobre a ajuda dada por Deus. O livro foi muitas vezes


reformado, o que assinala muito objetivamente R.P.A. Lefèvre, nas Preliminares


da Bíblia de Crampon: os prefácios alternados e os apêndices o testemunham. A


história de Ruth prende-se a essas narrações dos Juízes.


O Livro de Samuel e os livros dos Reis são sobretudo as compilações


bibliográfi cas, interessando Samuel, Saul, David e Salomão. Seu valor histórico


é discutido. E. Jacob encontra nesse ponto de vista numerosos erros, onde


versões de um mesmo acontecimento podem ser duplas ou triplas. Os profetas


Elias, Eliseu, Isaías têm também seu lugar, mesclando os tratados históricos e as


lendas. Mas para outros comentadores, como R.P.A. Lefèvre, “o valor histórico


desses livros é fundamental”.


O primeiro e o segundo livros das Crônicas, os livros de Esdras e de


Neemias teriam um autor único, diz o cronista, vivendo no fi m do século IV


A.C Ele retoma toda a história da criação até esta época; suas genealogias não


iam, todavia, além de David. Com efeito, ele utiliza, sobretudo, o livro de Samuel


e o livro dos Reis, “ele as copia maquinalmente sem se preocupar com as inconsequências”


(E. Jacob) mas acrescenta também fatos precisos que a arqueologia


confi rma. Há nestas obras, o cuidado de se adaptar a história às necessidades


teológicas: o autor, escreve E. Jacob, “faz às vezes história a partir da teologia”.


“Assim , para explicar que o Rei Manassés, sacrílego e perseguidor, teve um


reino longo e próspero, ele postula uma conversação desse o rei ao longo de


uma jornada na Assíria (Crônicas,29 livro,33:11), onde não se trata de nenhuma


fonte bíblica ou extra bíblica”. Os livros de Esdras e de Neemias foram extre34





mamente criticados, porque plenos de obscuridade e porque dizem respeito a


um período que em si mesmo é muito mal conhecido, por falta de documentos


extra bíblicos, ao período do século IV A.C.


Classifi cam-se entre os livros históricos, os livros de Tobias, de Judith, de


Ester, nos quais as maiores liberdades são tomadas vis-à-vis da história: mudanças


de nomes próprios, invenção de personagens e de acontecimentos, tudo


isto dentro do melhor desígnio religioso. São, com efeito, as novelas de vocação


moralista, enganosas, duvidosas históricas e inexatitudes.


Os outros são os dois livros de Macabeus, que dão sobre os acontecimentos


do século II A.C uma versão tão exata quanto possível da história desse


período e constituem, por isso, testemunhas de grande valor.


O conjunto de livros ditos históricos é, portanto, muito disparatado. A


historia é tratada de uma maneira tão científi ca quanto fantasista.


OS LIVROS PROFÉTICOS


Isolam-se sob, este nome as pregações de diversos profetas classifi cados


no Antigo Testamento, fora dos grandes primeiros profetas, cujo ensinamento


é evocado em outros livros torno Moises, Samuel, Elias ou Eliseu.


Os Livros Proféticos cobrem o período do século VIII ao II A.C


No século VIII A.C, são os livros Amos, Oséias, Isaias e Miquéias. O


primeiro é célebre por sua condenação das injustiças sociais, o segundo peia


condenação da corrupção religiosa que lhe valeu um sofrimento na própria


pele (depois de haver esposado uma prostituta sagrada de um culto pagão), à


imagem de Deus que sofre a degradação de seu povo, mas lhe dá sempre seu


amor. Isaías é uma fi gura da história política: consultado pelos reis, ele domina


os acontecimentos; é o Profeta da Grandeza. A essas obras pessoais, junta-se


a publicação de seus oráculos por seus discípulos, e isso até o século III A.C:


protestos contra as iniquidades, temor do julgamentos de Deus, anúncio da


libertação no tempo do exílio, anúncio num período mais tardio da volta dos


judeus à Palestina. É certo que nos seus segundo e terceiro Isaías, o cuidado


profético se dobra em um cuidado político que aparece em plena luz. A pre35





gação de Miquéias, que é contemporâneo de Isaías, procede das mesmas ideias


gerais.


No século VII A.C, são Sofonias, Jeremias, Naum, Habacuque que se


ilustram na pregação. Jeremias acaba mártir. Seus oráculos foram copilados por


Baruch. Ele é possivelmente o autor das Lamentações.


O exílio na Babilônia, no início do século VI A.C, deu nascimento a uma


atividade profética intensa, onde Ezequiel é uma grande fi gura sob o título de


consolador de seus irmãos, entre os quais ele semeia a esperança. Suas visões


são célebres. O livro de Abdias é uma relação com as desgraças de Jerusalém


conquistada.


Depois do exílio que termina em 538 A.C, a atividade profética prossegue


com Ageu e Zacarias para exortar à reconstrução do templo. Quando esta


termina, o que está escrito sob o nome de Malaquias comporta os oráculos


diversos de natureza espiritual.


Por que o livro de Jonas é incluído nos livros proféticos, já que o Antigo


Testamento não lhe atribui os textos propriamente ditos? Jonas e uma história


de onde se ressalta um fato principal: a necessária submissão à vontade divina.


Daniel é um apocalipse “desconcertante” do ponto de vista histórico,


segundo os comentaristas cristãos, escrito em três línguas (hebreu, aramaico


e grego). Seria uma obra do século II A.C, da época Macabeana. O autor teria


querido convencer seus compatriotas da época de, “a abominação da desolação”,


que o tempo da libertação estava próximo, para manter sua fé (E. Jacob).


OS LIVROS POÉTICOS E DE SABEDORIA


Eles formam compilações possuidoras de uma indiscutível unidade literária.


Na primeira linha deles, os Salmos, que são um monumento da poesia


hebraica. Compostos por David (para muitos, por alguns padres e, para outros,


alguns levitas) têm por tema os louvores, as súplicas, as meditações. Sua função


era de ordem litúrgica.


36





O livro de Jó, o livro da sabedoria e da piedade por excelência, dataria


de 400 ou 500 A.C.


As Lamentações sobre a queda de Jerusalém, do início do século VI A.C,


poderiam ter Jeremias como autor.


É preciso ainda citar o Cântico dos Cânticos, cantos alegóricos antes


de tudo sobre o amor divino, o livro dos Provérbios, coleção de parábolas de


Salomão e outros sábios da corte, Eclesiastes ou Qohelet no qual se debate a


felicidade terrestre e sabedoria.


Como este conjunto, extremamente disparatado pelo conteúdo, de livros


escritos durante um período de sete séculos pelo menos, provindo de fontes


extremamente variadas, que foram em seguida amalgamadas (juntas) no interior


de uma mesma obra, pôde, no encadeamento dos séculos, vir a constituir um


todo indissociável e resultar - com algumas variantes segundo as comunidades


- no livro da Revelação judeu-cristã, o “cânon”, palavra grega à qual o sentido


de intangibilidade (imaterial) é ligado?


O amálgama não data do cristianismo, mas do judaísmo mesmo, sem


dúvida, uma primeira etapa no século VII A.C, com os livros posteriores vindo


a se juntar aos primeiros. É preciso observar, entretanto, o lugar bem privilegiado


concedido em todo tempo aos cinco primeiros formadores da Tora ou


Pentateuco. Cumprindo-se os anúncios dos profetas (promessa de um castigo


em função das faltas), não foi muito difícil se acrescentar seus textos aos livros


precedentemente admitidos.


Houve mesmo promessas de esperanças prodigiosas, feitas pelos mesmos


pregadores. No Século II A.C, o “cânon” dos Profetas foi constituído.


Os outros livros como os Salmos, em função de seu papel litúrgico,


foram integrados com os outros escritos, como as Lamentações e os escritos


de sabedoria de Salomão ou de Jó.


O cristianismo, inicialmente judeu-cristianismo, tão bem estudado - ver-


-se-á mais adiante - pelos autores modernos como o cardeal Damélon, antes


de sofrer sua transformação sob a infl uência de Paulo, muito normalmente


recebeu esta herança do Antigo Testamento ao qual os autores dos Evangelhos


são estreitamente ligados. Mas isso foi feito o “expurgo” dos Evangelhos


eliminando-se os “apócrifos”, não se acreditou ser necessária a mesma triagem


para o Antigo Testamento, e aceitou-se tudo por assim dizer; tudo ou quase


tudo.


37





Quem ousou contestar o que quer que fosse, concernente a este amálgama


disparatado até o fi m da Idade Média, no Ocidente, pelo menos? Ninguém


ou quase ninguém. Do fi m da Idade Média ao início dos Tempos Modernos,


algumas críticas surgiram; verifi cou-se isto, acima, mas as Igrejas sempre


conseguiram impor sua autoridade. Uma autêntica crítica textual, certamente,


nasceu em nossos dias mas, se seus especialistas eclesiásticos consagraram muito


talento para examinar uma infi nidade de pontos de detalhes, eles julgaram


preferível não ir muito adiante naquilo que eles chamam com eufemismo de


“difi culdades”. Eles não parecem nada entusiasmados em estudar essas últimas à


luz dos conhecimentos modernos. Se o objetivo são paralelos históricos - principalmente


quando uma certa concordância aparece entre eles e as narrações


bíblicas -, não se engajou ainda na via de uma comparação franca e aprofundada


com as noções científi cas, a qual, percebe-se, levaria a contestar a noção até


então indiscutida da verdade das Escrituras Judeu-Cristãos.


O ANTIGO TESTAMENTO E A CIÊNCIA MODERNA


CONSTATAÇÕES


Poucos dos assuntos tratados no Antigo Testamento, como aliás nos


Evangelhos, dão lugar a uma confrontação com os dados dos conhecimentos


modernos. Mas quando há a incompatibilidade entre o texto bíblico e a ciência,


é a propósito de questões que podemos qualifi car de maiores.


Nós já vimos no capítulo precedente, que se encontravam na Bíblia erros


de ordem histórica e citamos certos deles revelados por alguns exegetas judeus


e cristãos. Estes últimos têm uma tendência natural de minimizar sua importância;


eles consideram bem normal que o autor sagrado possa apresentar os


fatos históricos em função da teologia, escrevendo, portanto, a história para as


necessidades da causa.


Sob o ângulo da lógica, mais adiante, a propósito do Evangelho de Mateus,


as mesmas liberdades tomadas com a realidade e os mesmos comentários


tendo por objetivo fazer admitir como verdade o que é uma contra verdade.


38





Um espírito objetivo e lógico não pode estar satisfeito com essa maneira de


proceder.


Sob o ângulo da lógica, pode-se ressaltar na Bíblia um número considerável


de contradições e incertezas. A existência de fontes diferentes que serviram


para a confecção da narrativa pode ser a origem da narração de um mesmo fato


sob duas apresentações; mas há mais: os remanejamentos diversos, as adições


posteriores nos textos como os comentários acrescidos a posteriori, incluídos


mais tarde na narração quando de uma nova cópia, tudo isto é bem conhecido


dos especialistas da crítica textual e muito honestamente sublinhado por alguns.


Apenas para o Pentateuco, por exemplo, R.P. de Vaux detalhou, na Introdução


Geral, precedendo sua tradução do Gênesis (págs. 13-14) de numerosíssimas


discordâncias, que não parece útil reproduzir aqui, porque serão feitas citações


várias, entre elas, neste estudo. Tira-se daí a ideia geral de que não é preciso


tomar o texto ao pé da letra.


Aqui está um exemplo bem característico:


No Gênesis (6:3), Deus decide, justamente antes do Dilúvio, dali em


diante, limitar a vida do homem a cento e vinte anos. “Seus dias serão cento e


vinte anos”, escreveu Ele. Ora, nota-se mais adiante (Gênesis 10: 1-32) que os dez


descendentes de Noé tiveram duração da vida que vai de 148 a 600 anos (ver o


quadro no qual é marcado nesse capítulo, a descendência de Noé até Abraão).


A contradição entre essas duas passagens é manifesta. A explicação é simples.


A primeira passagem (Gênesis 6:3) é um texto Yahvista que, como vimos acima,


data, sem duvida, do século X A.C. A segunda passagem do Gênesis (11 : 10-32)


é um texto muito mais recente (século VI A.C.) da tradição Sacerdotal, que é,


na origem destas genealogias, tão precisas na enumeração da duração da vida,


quanto inverossímeis, quando se as toma em conjunto.


É no Gênesis que existem as incompatibilidades mais evidentes com a


ciência moderna. Estas concernem a três pontos essenciais:


1ª - A criação do mundo e suas etapas;


2ª - A data da criação do mundo e a data do aparecimento do homem


sobre a Terra;


3ª - A narração do Dilúvio.


39





A CRIAÇÃO DO MUNDO


Como acentua R.P. de Vaux, o Gênesis “começa por duas narrações justapostas


da criação”. É preciso, do ponto de vista do exame de sua compatibilidade


com os dados da ciência, examiná-las separadamente.


A PRIMEIRA NARRAÇÃO DA CRIAÇÃO


A primeira narração ocupa o capítulo primeiro e todos os primeiros versículos


do segundo capítulo. Ele é um monumento de inexatidões do ponto de


vista científi co. É preciso encarar sua crítica, parágrafo por parágrafo. O texto


reproduzido aqui é o da tradução, segundo a Escola Bíblica de Jerusalém:


- Capítulo 1°, Versículos 1 e 2:


“No princípio criou Deus os céus e a terra. E a terra era sem forma e


vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o espírito de Deus se movia sobre


a face das águas”.


Pode-se bem admitir que, quando a Terra não havia sido criada, o que


vai transformar o universo, tal como nós o conhecemos, estava mergulhado


nas trevas, mas mencionar a existência das águas nesse período é uma alegoria


pura e simples: é provavelmente a tradução de um mito. Ver-se-á na terceira


parte deste livro que tudo leva a pensar que, no estágio inicial da formação do


universo, existia uma massa gasosa; colocar água aí é um erro.


- Versículos 3-5:


“Que haja luz e houve luz. Deus viu que a luz era boa e separou a luz


das trevas. Deus chamou a luz, Dia e às trevas, Noite. E houve uma tarde e uma


manhã: primeiro dia”.


A luz que percorre o universo é a resultante de reações complexas que


passam ao nível das estrelas, sobre as quais voltaremos na terceira parte desse


livro. Ora, nesse estágio da criação, as estrelas não tinham ainda sido formadas,


segundo a Bíblia, pois “as luzes” do fi rmamento não são citadas no Gênesis, a


40





não ser no Versículo 14, como uma criação do quarto dia “para separar o dia da


noite”, “para clarear a terra”, o que é rigorosamente exato. Mas é ilógico citar


o efeito produzido (a luz) no primeiro dia, situando a criação do meio de produção


desta luz (as luzes) três dias mais tarde. Além disso, colocar no primeiro


dia a existência de uma tarde e uma manhã é puramente alegórico: a tarde e a


manhã, como elementos de um dia, só são concebidos quando da existência da


terra e sua rotação sob a iluminação de sua estrela próxima: o Sol.


- Versículos 6-8:


“Deus disse: haja fi rmamento no meio das águas e que ele separe as


águas e das águas e assim se fez. Deus fez o fi rmamento, que separou as águas


que estão sob o fi rmamento das águas que estão acima do fi rmamento, e Deus


chamou fi rmamento, o céu. E houve uma tarde e houve uma manhã: segundo


dia”.


O mito das águas continua aqui com a separação delas em duas camadas


por um fi rmamento que, na narração do Dilúvio, vai deixar passar as águas de


cima que vão se despejar sobre a terra. Essa imagem de uma cisão das águas em


duas massas é cientifi camente inaceitável.


- Versículos 9-13:


“Deus disse: “que as águas que estão debaixo do céu se reúnam em uma


só massa e que apareça o continente”, e assim se fez. Deus chamou o continente


“terra e a massa das águas “mar” e Deus viu que era bom.” Deus disse: “que a


terra produza verdura: as ervas dando sementes segundo sua espécie, as árvores


dando segundo sua espécie frutos contendo sua semente”. E Deus viu que isto


era bom. E houve uma tarde e uma manhã: terceiro dia”.


O fato de que numa certa época da história da terra, quando ela estava


recoberta de água. Continentes tenham emergido é bem aceitável cientifi camente.


Mas que um reino vegetal bem organizado, com uma reprodução por grãos,


apareça antes que exista o sol (isto será, diz o Gênesis, pelo quarto dia) e que se


estabeleça o revezamento dos dias e das noites é absolutamente insustentável.


- Versículos 14-19:


“Deus disse: “haja luzeiros no fi rmamento do céu para separar o dia da


noite, que eles sirvam de sinais, tanto para as festas como para os dias e os anos;


41





que eles sejam os luzeiros no fi rmamento do céu para clarear a terra”. E assim


se fez. Deus fez os dois luzeiros maiores: o grande luzeiro como potência do


dia e o pequeno luzeiro como potência da noite, e as estrelas. Deus os colocou


no fi rmamento do céu para clarear a terra, para comandar o dia e a noite, para


separar a luz e as trevas, e Deus viu que era bom. Houve tarde e houve manhã:


quarto dia”.


Aqui a descrição do autor bíblico é aceitável. A única crítica que se pode


fazer a esta passagem é o lugar que ocupa no conjunto da narração. Terra e


Lua surgiram, sabe-se, de sua estrela original, o Sol. Colocar a criação do Sol e


da Lua, depois da Terra, é absolutamente contrário às noções mais solidamente


estabelecidas sobre a formação dos elementos do sistema solar.


- Versículos 20-30:


‘’Deus disse: “Que as águas fervilhem um fervilhar de seres vivos e aves


voem por sobre a terra contra o fi rmamento do céu”, e assim se fez. Deus criou


as grandes serpentes do mar e todos os seres vivos que deslizem e que se


movem nas águas seguindo sua espécie, e toda raça alada segundo sua espécie


e Deus viu que isso era bom. Deus abençoou e disse: sejai fecundos, multiplicai-


-vos e enchei a água dos mares e que os pássaros se multipliquem sobre a terra.


E houve uma tarde, uma manhã: quinto dia”.


Esta passagem contém afi rmações inaceitáveis.


O aparecimento do reino animal se fez, diz o Gênesis, a princípio, a partir


dos animais marinhos e das aves. Segundo esta narração bíblica, é somente no


dia seguinte - ver-se-á nos versos subsequentes - que a própria terra vai ser


povoada de animais.


Certamente, a origem da vida é marinha: esta questão será considerada


a terceira parte do livro. A partir daí, a terra foi, se se pode dizer, colonizada


pelo reino animal, e é desses animais vivendo na superfície do solo, uma espécie


particular de répteis chamados “pseudosuchiens”, que viviam na era secundária,


que provêm – pensa-se - os pássaros; numerosos caracteres biológicos comuns


a essas duas classes autorizam esta dedução. Ora, os animais terrestres não são


mencionados pela Gênese a não ser no sexto dia, depois do aparecimento dos


pássaros. Esta ordem de aparição dos animais terrestres e dos pássaros não é


aceitável.



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