Quando se lê os textos islâmicos relacionados aos juros, imediatamente percebe-se o quanto os alertas contra qualquer envolvimento com juros são rigorosos. O Islã proíbe vários atos imorais como fornicação, adultério, homossexualidade, consumo de álcool e assassinato. Mas a variedade de discussão e extensão dos alertas para esses outros atos não está no mesmo nível daqueles relacionados aos juros. Isso fez com que Sayyid Qutub escrevesse: “Nenhum outro assunto foi condenado e denunciado tão fortemente no Alcorão quanto a usura.” [1]
O Alcorão, por exemplo, contém os seguintes versículos relacionados aos juros[2]:
“Ó crentes, não exerçais a usura, multiplicando (o emprestado) e temei a Deus para que prospereis, E guardai-vos do Fogo, que é preparado para os descrentes.” (Alcorão 3:130-131)
Esse é um alerta muito forte para os crentes sobre uma consequência fatal: serem jogados no fogo do inferno preparado para os descrentes.
Deus também diz:
“Os que praticam a usura só serão ressuscitados como aquele que foi perturbado por Satanás; isso, porque disseram que a usura é o mesmo que o comércio; no entanto, Deus consente o comércio e veda a usura. Mas, quem tiver recebido uma exortação do seu Senhor e se abstiver, será absolvido pelo passado, e seu julgamento só caberá a Deus. Por outro lado, aqueles que reincidirem, serão condenados ao inferno, onde permanecerão eternamente. Deus abomina a usura e multiplica a recompensa aos caritativos; Ele não aprecia nenhum descrente pecador.” (Alcorão 2:275-276)
Esses versículos têm muitos pontos interessantes. Ao comentar sobre a primeira parte desse versículo, Maududi escreveu:
Assim como uma pessoa insana, sem limites fornecidos pela razão, recorre a todos os tipos de atos imoderados, faz aquele que lida com juros. Persegue sua busca por dinheiro como se fosse insano. Indiferente ao fato de que os juros retiram as raízes do amor humano, da fraternidade e empatia, mina o bem-estar e felicidade da sociedade humana e seu enriquecimento é à custa do bem-estar de muitos outros seres humanos. Esse é o estado de sua “insanidade” nesse mundo: uma vez que um homem ressuscitará na Vida Eterna no mesmo estado no qual morreu nesse mundo presente, será ressuscitado como um lunático.[3]
Em segundo lugar, o versículo deixa claro que existe uma diferença entre transações comerciais legítimas e juros. A diferença entre elas é tão gritante que o versículo não se ocupa de explicá-las, o que é um dos aspectos estilísticos do Alcorão. Em terceiro lugar, os versículos afirmam claramente que Deus “abomina a usura e multiplica a recompensa aos caritativos.” Essa é uma das “leis” de Deus que a humanidade não pode necessariamente descobrir por conta própria. Os efeitos negativos plenos e finais dos juros sobre o indivíduo, comunidade e o mundo como um todo tanto nessa vida quanto na Vida Eterna são conhecidos apenas por Deus. Entretanto, um olhar sobre alguns desses aspectos negativos, que testemunham a verdade desse versículo, serão fornecidos mais tarde nesse artigo. De fato, talvez para destacar o significado desse versículo, o Profeta (que a paz e bênçãos de Deus estejam sobre ele) também disse: “Juros – mesmo em grande quantidade – no final resultarão em uma pequena quantidade.” [4] Sem dúvida, na Vida Eterna quando o indivíduo se encontra com Deus, tudo que acumulou através de meios ilícitos será fonte de sua própria destruição.
Pouco depois dos versículos acima, Deus diz ainda:
“Ó vós que credes, temei a Deus e abandonai o que ainda vos resta da usura, se sois crentes! Mas, se tal acatardes, esperai a hostilidade de Deus e do Seu Mensageiro; porém, se vos arrependerdes, reavereis apenas o vosso capital. Não defraudeis e não sereis defraudados.” (Alcorão 2:278-279)
Quem em pleno juízo se exporia a uma declaração de guerra de Deus e Seu Mensageiro? Sem dúvida, dificilmente se encontrará uma ameaça mais forte. No fim do versículo Deus deixa claro por que os juros são proibidos: é prejudicial. A palavra árabe para isso é dhulm, significando uma pessoa que prejudicou, causou dano ou oprimiu outra pessoa ou sua própria alma. Esse versículo demonstra que os juros não são proibidos simplesmente devido a algum mandamento de Deus sem qualquer racionalidade por trás desse mandamento. Os juros são definitivamente prejudiciais e, portanto, foram proibidos.
Além dos versículos do Alcorão, o Profeta Muhammad (que a paz e bênçãos de Deus estejam sobre ele) também fez declarações relacionadas aos juros. A declaração a seguir, por exemplo, demonstra claramente a gravidade dessa ação:
“Evite os sete pecados destrutivos: associar parceiros a Deus, magia, matar uma alma que Deus proibiu - exceto através do devido curso legal, juros, consumir a riqueza dos órfãos, fugir quando dois exércitos se encontrarem, caluniar as mulheres castas, crentes e inocentes.” (al-Bukhari e Muslim)
De fato, outra declaração do Profeta (que a paz e bênçãos de Allah estejam sobre ele) deve ser suficiente para manter qualquer indivíduo temente a Deus completamente longe dos juros. O Profeta (que a paz e bênçãos de Allah estejam sobre ele) disse:
“Uma moeda dos juros consumida conscientemente por uma pessoa é pior aos olhos de Deus do que trinta e seis atos de relação sexual ilícita.” (al-Tabarani e al-Hakim)
O companheiro Jabir narrou que o Mensageiro de Deus (que a paz e as bênçãos de Deus estejam sobre ele) amaldiçoou quem cobra juros, quem paga juros, a testemunha [ou seja, os contratos que incluem juros] e quem o registra. Então ele disse: “São todos iguais.” (Muslim)
Esse é um princípio básico do Islã. Se algo é proibido e errado, um muçulmano não pode participar ou dar apoio de forma alguma. Assim, se juros são proibidos, também é proibido ser testemunha desses contratos, registrá-los e assim por diante. As palavras do Profeta também explicam que não existe diferença entre aquele que paga juros e aquele que os cobra. Ambos se envolveram em uma prática desprezível e, portanto, são igualmente culpados.
O Profeta Muhammad (que a paz e bênçãos de Allah estejam sobre ele) também disse:
“Se relações sexuais ilícitas e juros aparecerem abertamente em uma cidade, eles se abriram para a punição de Deus.” (al-Tabarani e al-Hakim)
Essa afirmação é uma referência à uma das “leis sociais” de Deus.” A punição de Deus pode vir em diferentes formas nesse mundo ou no próximo.
O Islã, claro, não é a única religião que baniu os juros e os considerou uma prática desprezível. A proibição dos juros – pelo menos até certo ponto – é bem conhecida tanto no Velho quanto no Novo Testamento da Bíblia. Em vários lugares no Velho Testamento são feitas referências à “usura” ou “juros”. (Novamente, usura e juros costumavam ser equivalentes, mas com o passar do tempo usura passou a significar quantia exorbitante ou ilegal de juros. Assim, como será destacado abaixo, a American Standard Version da Bíblia repetidamente alterou na Versão do Rei James usura para juros).
Deuteronômio 23:19-20 diz:
“Não emprestarás com usura a teu irmão nem dinheiro, nem grão, nem outra qualquer coisa que seja, mas somente ao estrangeiro. A teu irmão porém emprestarás o que ele houver mister, sem daí tirares algum interesse, para que o Senhor teu Deus te abençoe em tudo o que fizeres na terra, em cuja posse estás para entrar.” (Versão do Rei Jaime).[1]
Da mesma forma, Êxodo 22:25 afirma:
“Se emprestares dinheiro ao meu povo, ao pobre que está contigo, não te haverás com ele como credor; não lhe imporás juros.” (Versão do Rei Jaime).
Em Levítico 25:37 se lê:
“Não lhe darás teu dinheiro a juros, nem os teus víveres por lucro.” (Versão do Rei Jaime).
Em Jeremias 15:10, o profeta reclama de estar sendo amaldiçoado embora nunca tenha feito nada como cobrar juros, significando que essas maldições seriam apropriadas para ele se fosse alguém que cobrasse juros. Talvez um dos versos mais duros no Velho Testamento com relação aos juros seja Ezequiel 18:13:
“Empreste com usura, e receba mais do que emprestou; porventura viverá ele? Não viverá! Todas estas abominações, ele as praticou; certamente morrerá; o seu sangue será sobre ele.”
Existem ainda outros versos do Velho Testamento que indicam a proibição de juros, mas o que foi apresentado acima deve ser suficiente.[2] O Dicionário Bíblico de Easton resumiu a Lei Mosaica com relação a juros na seguinte passagem:
A Lei Mosaica exigia que quando um israelita precisasse tomar emprestado, o que pedisse fosse emprestado a ele e nenhum juro devia ser cobrado, embora os juros pudessem ser cobrados de um estrangeiro (Êxodo 22:25; Deuteronômio 23:19-20; Levítico 25:35-38). No fim de sete anos todos os débitos eram perdoados. Entretanto, de um estrangeiro o empréstimo podia ser cobrado. Em um período posterior da comunidade hebraica, quando o comércio aumentou, a prática da usura ou cobrança de juros sobre empréstimos, e de fiança no sentido comercial, cresceu. Ainda assim a sua cobrança de um hebreu era considerada vergonhosa (Salmos 15:5; Provérbios 6:1,4; 11:15; 17:18; 20:16; 27:13; Jeremias 15:10).
Infelizmente, como é o caso em questões práticas, o Novo Testamento é de certa forma vago sobre os juros. De acordo com The Encyclopedia of Religion and Ethics (Enciclopédia de Religião e Ética, em tradução livre), “não existem preceitos diretos [relacionados aos juros] para orientar a consciência cristã.” [3] Entretanto, nos ensinamentos atribuídos a Jesus no Novo Testamento, existem algumas passagens que parecem ser claramente contra a prática de juros. Em uma passagem, relata-se que Jesus disse:
“Amai, porém a vossos inimigos, fazei bem e emprestai, nunca desanimado; e grande será a vossa recompensa, e sereis filhos do Altíssimo; porque ele é benigno até para com os integrantes e maus.” (Lucas 6:35).
Nessa passagem é dito aos cristãos para emprestarem dinheiro sem esperar receber o principal novamente. Essa pode ser considerada um dos “ditos difíceis” e, como é bem conhecido, os sábios cristãos diferem em como essas passagens devem ser interpretadas e implementadas.[4]
Em Mateus 25: 14-28 existe uma longa parábola na qual Deus dá quantidades diferentes de moedas (chamadas “talentos”) a vários servos. Alguns deles investem o dinheiro e devolvem mais do que Deus lhes deu. Entretanto, a pessoa a quem Deus deu apenas uma dessas moedas é descrita no verso 18:
“Mas o que recebera um foi e cavou na terra e escondeu o dinheiro do seu senhor.”
Quando Deus chamou de volta Seus servos e perguntou o que tinham feito com o dinheiro, o que recebeu apenas um talento afirmou a Deus:
“Chegando por fim o que recebera um talento, disse: Senhor, eu te conhecia, que és um homem duro, que ceifas onde não semeaste, e recolhes onde não joeiraste; e, atemorizado, fui esconder na terra o teu talento; eis aqui tens o que é teu.” (Mateus 25: 24-25).
O Senhor então o repreendeu severamente:
“Ao que lhe respondeu o seu senhor: Servo mau e preguiçoso, sabias que ceifo onde não semeei, e recolho onde não joeirei? Devias então entregar o meu dinheiro aos banqueiros e, vindo eu, tê-lo-ia recebido com juros. Tirai-lhe, pois, o talento e dai ao que tem os dez talentos.” (Mateus 25:26-28).
Ao comentar sobre essa passagem a Bíblia de Estudos de Genebra, afirma:
Os banqueiros que têm suas lojas ou filiais no exterior, onde emprestam dinheiro a juros. A usura ou empréstimo de dinheiro a juros é estritamente proibido pela Bíblia (Êxodo 22:25-27; Deuteronômio 23:19-20). Mesmo uma taxa tão baixa quanto um por cento foi proibida (Neemias 5:11). Esse servo já tinha contado duas mentiras. Primeiro, disse ao mestre que era um homem austero ou severo. Era uma mentira porque o senhor era misericordioso e gracioso. Depois chamou seu mestre de ladrão porque colheu onde não semeou. Finalmente o mestre disse a ele sarcasticamente: por que não acrescenta insulto à injúria e empresta dinheiro a juros para poder chamar seu mestre de “usurário” também! Se o servo tivesse feito isso, seu mestre seria responsável pelas ações e culpa de usura do servo.
Com base no Velho e Novo Testamentos, os primeiros concílios da igreja proibiram os juros. Por fim, todos os cristãos foram proibidos de se envolverem com juros, não apenas o clero. Os patriarcas cristãos, como São Tomás de Aquino[5], lidaram com a questão dos juros com algum detalhe. “No Decreto de Graciano, como subsequentemente no Terceiro Concílio de Latrão (1179), um cânone determinou que “usurários manifestos não deviam ser admitidos para comunhão, nem receberem enterro cristão, se morressem em seu pecado.” [6] O Quarto Concílio de Latrão de 1215 condenou a prática, mas a permitiu para os judeus. Os católicos permaneceram firmemente contra os juros até o século 19. Martim Lutero do século 16, o líder protestante, também condenou a usura mas, alega-se, que a permitiu sob o pretexto da fraqueza humana.[7] Calvino, mais do que ninguém, foi o começo de uma visão mais suave em relação aos juros entre os líderes cristãos. Lentamente a legislação civil se libertou da Lei Canônica e os juros começaram a ser institucionalizados com o passar do tempo.
Os pensadores judaico-cristãos não foram os únicos que condenaram os juros. De fato, os filósofos gregos também adotaram uma visão muito negativa sobre os juros. Aristóteles e outros sábios gregos de destaque condenaram os juros. O famoso economista austríaco Eugen von Böhm von Bawerk (também conhecido como Boehm-Bawerk), escreveu em seu importante trabalho Capital and Interest (Capital e Juros):
As expressões hostis do mundo antigo, que não eram poucas, consistem em parte de um número de atos legislativos que proibiam cobrar juros e em parte à declaração casual de filósofos como Platão, Aristóteles, os dois Catão, Cícero, Sêneca e Pantus, etc. Os filósofos gregos consideravam o dinheiro como um meio de troca e, consequentemente, negavam a produtividade de empréstimos. Um pedaço de dinheiro não pode gerar outro pedaço, era a doutrina de Aristóteles. A conclusão óbvia é que os juros eram injustos.[8]
Inicialmente o Império Romano também proibiu a cobrança de juros. Com o surgimento das classes mercantis isso foi amenizado um pouco, mas ainda existiam restrições severas sobre cobrança de juros e também leis para proteger devedores.
O personagem Shylock de Shakespeare em O Mercador de Veneza (escrito pouco antes do ano 1600) demonstra o quanto os agiotas eram desprezados. Levanta-se a questão óbvia de como os juros passaram de um ato desprezado e proibido a socialmente aceitável e prática institucionalizada no Ocidente