Jihad e escravidão: as origens dos
escravos muçulmanos da Bahia
Paul E. Lovejoy
Sabe-se que a configuração étnica da população baiana modificou-se significativamente
nas últimas décadas do século XVIII e ao longo do
seguinte, quando Hauçás, Nupes e outros povos islamizados tornaram-se
comuns entre os escravos, em especial a partir dos volumosos desembarques
de cativos de fala Ioruba no século XIX.1 As origens desses escravos
muçulmanos podem estar relacionadas ao contexto próprio das áreas interioranas
da Baía de Benin e à jihad do Xeque Usman dan Fodio (morto em
1817), fundador do Califado de Sokoto. Deste modo, este estudo examina
o material biográfico disponível, em uma tentativa de oferecer subsídios
adicionais acerca da comunidade muçulmana para, assim, estabelecer
mais claramente as ligações entre os padrões de resistência à escravidão na
Bahia, que culminaram na insurreição Malê de 1835, e o movimento da
jihad no interior da Baía de Benin.
Em um estudo anterior examinei 108 indivíduos cuja escravização no
interior daquela zona foi seguida de sua migração para a Bahia ou, pelo
menos, tinha-se tal destino em pauta.2 A ele foram acrescentadas outras
biografias, do que derivou uma amostragem agora redefinida para 117
indivíduos originários do Sudão Central (veja-se o apêndice), região interiorana
em relação à Baía de Benin que compreendia zonas de savana e parte
do sahel, e que caiu sob dominação do Califado de Sokoto no século XIX.
Por certo, nem todas estas pessoas desembarcaram na Bahia, e algumas
acabaram em Serra Leoa, por exemplo.3 Contudo, o grau de concentração
da população escrava islamizada da Bahia permite-me supor que as características
dos cativos libertados em Serra Leoa, e de outros que não alcançaram
o Brasil, são representativas dos padrões históricos mais amplos, transferidos
para solo baiano através da jihad; embora, é claro, reinterpretados
pelas condições locais.
Topoi, Rio de Janeiro, nº 1, pp. 11-44.
1 2 • TO P O I
A associação entre a jihad e a população muçulmana deslocada para o
Brasil constitui-se em um tema complexo, do qual nos aproximamos aqui,
como já se disse, por meio do exame das histórias de vida de indivíduos
escravizados no Sudão Central. Conforme discutido em outro trabalho, a
eclosão da Guerra Santa muçulmana, em 1804, sucedeu a um período de
turbulências políticas que eram, em parte, caudatárias de reações à escravização
de muçulmanos que alegavam ser livres, e sua exportação para as
Américas.4 Contudo, longe de pôr termo à escravização e à exportação de
islâmicos, aparentemente a jihad teve por efeito a disseminação do câncer
do cativeiro, com freqüência vitimando pessoas que imaginavam que a
submissão ao Islã poderia protegê-las da deportação para além-mar. Por
outro lado, até mesmo muitos opositores da Guerra Santa que se encontravam
escravizados voltaram-se para o Islã militante no Brasil, promovendo
a causa revolucionária da jihad como forma de obter maior autonomia ou
a liberdade. A grande extensão do Islã militante na Bahia derivava do fato
de que os muçulmanos enviados para as Américas encontravam-se ali fortemente
concentrados. É possível que de 100 a 150 mil escravos do Sudão
Central (excluídos os Iorubas setentrionais) tenham cruzado o Atlântico
entre meados do Setecentos e a primeira metade do século XIX. Tal estimativa
inclui os cativos identificados como Hauçás, Nupes, Bornos, Borgus
e outras designações que indicam uma origem ao norte da Iorubalândia.
De 75 a 124 mil destes escravos partiram entre 1800 e 1850, com a grande
maioria dirigindo-se, sem dúvida, para o Brasil, especialmente para a Bahia.5
Os identificados como “Iorubas do norte” (i.e., Oyo, Ekiti, Yagba e Okun
Ioruba) também estavam bem representados na população exportada6 e,
embora ainda não seja possível calcular o número de Iorubas setentrionais,
estes eram certamente numerosos. Por conseguinte, nossa análise vai além
do foco mais antigo representado pelas populações Hauçá, Nupe e Borno,
ainda que as estimativas da escala da migração forçada de áreas afetadas pela
jihad de Sokoto não incluam os Iorubas. Com esta perspectiva mais ampla,
tenta-se capturar as áreas nas quais a jihad estava sendo levada a cabo
até meados do Oitocentos.
Apesar dos dados não serem conclusivos, pode-se dizer, em uma estimativa
conservadora, que os escravos do Sudão Central constituíam de 10
• 1 3
a 15% dos escravos exportados pela Baía de Benin nas décadas de 1770 e
1780, proporção que subiu nos anos 90 e ao longo da primeira década do
século XIX, com a concomitante queda do número de escravos originários
de áreas costeiras.
Em termos globais, é possível que 40 ou 50 mil escravos centro-sudaneses
tivessem sido exportados pelo Atlântico no século XVIII. Após este
período, a proporção de cativos originários daquela região, em relação ao
total de exportados através da Baía de Benin, conheceu acentuadas flutuações.
No início da década de 1810, na primeira metade dos anos 20 e durante
a primeira parte da década de 30 do século XIX, quando as exportações
globais da Baía de Benin foram relativamente baixas, os escravos do
Sudão Central talvez representassem de 25 a 40% do total vendido. Em
anos-pico de fins das décadas de 1810, 1820 e 1830, a proporção de centro-
sudaneses provavelmente caiu para 15% do total das exportações da
Baía de Benin.7 Nestas ocasiões, a quantidade de Iorubas era grande, em
especial a de Iorubas meridionais.
As origens étnicas dos escravos do Sudão Central
A maioria dos escravos que vieram do Sudão Central, no século XVIII,
chegou à Baía de Benin através de Oyo. Comerciantes muçulmanos da
região sudânica eram muito ativos naquela área já na primeira década do
Setecentos, quando traziam escravos, panos e marfim à costa em troca de
álcool, cauris e outros bens.8 Por volta de meados do século, escravos Hauçás
eram comuns em Oyo, tanto para uso doméstico quanto militar.9 Nas
décadas de 1780 e 1790, à margem deste mercado doméstico, as reexportações
de cativos centro-sudaneses para as Américas através de Oyo (por
meio de seus portos ao longo da “Costa dos Escravos”) parecem ter crescido,
em resposta à demanda americana por fontes adicionais de cativos. De
fato, Porto Novo emergiu como o principal porto de Oyo, e seu comerciante
mais importante nos anos 80 e 90, Pierre Tamata, um antigo escravo
de origem Hauçá que fora educado na França, chegou a viajar para o
Brasil.10 Neste período, poucos cativos, se é que os havia, foram exportados
do Sudão Central através da Baía de Biafra ou da Costa de Ouro.11
1 4 • TO P O I
A jihad foi responsável por uma proporção significativa das exportações
da Baía de Benin depois de 1804, embora estas estivessem em níveis
muito mais baixos do que em décadas pretéritas. A rota para a costa continuou
atravessando Oyo pelo menos até inícios da década de 30 do século
XIX, mas a crescente insegurança, relacionada à própria jihad, interferia
nas trocas. O Baixo Rio Níger tornou-se, portanto, uma rota alternativa
para o litoral, ao mesmo tempo em que outros escravos passaram a ser conduzidos
através da principal rota leste-ocidental para o país Achanti — a
mais importante fonte de nozes de kola, um estimulante amplamente consumido.
Escravos enviados a Achanti por certo bem poderiam ser reexportados
para os portos da Baía de Benin; desde a imposição da abolição pela
Inglaterra, depois das 1807, as feitorias da Costa de Ouro não puderam
continuar a exportar cativos.
As exportações de escravos da Baía de Benin totalizaram 75 mil cativos
na primeira década do século XIX — o mais baixo nível observado
naquela região em mais de 100 anos —, mas a parcela originária do Sudão
Central parece ter aumentado significativamente. Em 1806, a Baía de Benin
supria a Bahia com 8.307 indivíduos “Gege [Ewe/Fon/Gbe], Usa [Hauçá]
e Nagô [Ioruba]”.12 Embora as proporções de cada uma destas categorias
étnicas não sejam conhecidas, é possível que, em função das guerras de
Sokoto, os Hauçás constituíssem uma parte significativa delas.13 A importância
da jihad na geração de escravos entre 1804 e 1810 será atestada mais
adiante, por meio das biografias de cativos que haviam sido capturados nas
guerras santas, como no caso daqueles entrevistados por d’Andrada na Bahia
em 1819. A concentração de escravos Hauçás em território baiano data deste
período.
Os escravos provenientes do Sudão Central continuaram figurando
de forma significativa no comércio Atlântico da Baía de Benin depois de
1810, como reflexo da expansão da jihad, além da insurreição muçulmana
do exército de Ilorin em 1817, a guerra de Owu no início dos anos 20, as
revoltas que arruinaram Oyo nesta mesma década, as guerras de Nupe de
1822 a 1856 e a malograda insurreição islâmica ocorrida em Borgu (1835).
A mal sucedida incursão do Califado à costa, em 1843, demonstra seu
contínuo interesse nas áreas meridionais, e a jihad sempre resultava na esJ
I H A D E A E S C R A V I D Ã O • 1 5
cravização de pessoas em áreas próximas à Baía de Benin. Uma amostragem
de 177 escravos, de quatro diferentes navios negreiros datados do
período 1821-1822, inclui 41 Nupes, 34 Hauçás e um Fulani — os quais
perfazem 43% dos cativos cujas origens étnicas eram especificadas.14 Tal
amostragem parece ter sido típica somente da primeira metade do anos 20.
Em fins desta década e do decênio seguinte, os escravos Iorubas entraram
em quantidades expressivas e, ao longo destes períodos, o número de escravos
centro-sudaneses declinou em termos relativos, embora ainda representasse
uma proporção significativa das exportações globais.
No primeiro terço do século XIX, escravos Hauçás, Nupes e Bornos,
além de alforriados, constituíam parcela importante da população baiana.
De acordo com Reis, pelo menos 15,8% de todos os escravos e ex-escravos
da Bahia, em meados da década de 30 do século XIX, tinha vindo do Sudão
Central. Reis examinou registros relativos a cativos libertos entre 1819 e
1836, e de escravos urbanos de 1820 a 1835 (1.341 casos). Entre aqueles
cujas origens étnicas eram conhecidas (2.431 indivíduos), 385 indivíduos
eram originários do Sudão Central, dos quais 252 eram Hauçás (10,3%),
88 eram Nupes (3,6%) e 45 provinham de Borno (1,8%). Se os Iorubas
lançados no tráfico pelas guerras implementadas pelo Califado de Sokoto
forem incluídos neste total, a proporção de cativos centro-sudaneses, resultante
da crescente expansão da jihad naquela região, aumentará ainda
mais. Escravos Iorubas e libertos constituirão 28,6% da amostragem de Reis
(699 pessoas),15 e parece provável que muitos, senão a maioria deles, resultavam
direta ou indiretamente da jihad. Dado que índices desta magnitude
só podiam ser alcançados como conseqüência de uma forte importação
de cativos durante as duas ou três décadas anteriores a 1835, os escravos do
Sudão Central devem ter constituído uma proporção significativa das exportações
de cativos da Baía de Benin naquele momento.
Na realidade, embora não refletidas nos registros baianos, as origens
étnicas dos escravos centro-sudaneses eram complexas. Algumas indicações
desta complexidade podem ser capturadas a partir de um inventário lingüístico
efetuado em 1850, em Serra Leoa, pelo missionário e lingüista alemão
Sigismund Wilhelm Koelle. Ele coletou o vocabulário de ex-escravos,
muitos dos quais originários da Baía de Benin, e identificou indivíduos que
1 6 • TO P O I
poderiam falar Igala (13), Nupe e idiomas correlatos (303), línguas de Borno
(36), Buduma (1), Fika (5), Karekare (2), Bede e Ngizim (16), Hauçá (8),
e um número desconhecido de Fulani entre ex-escravos do Sudão Central.16
Os Hauçás estavam claramente sub-representados nesta amostragem.
Koelle estava tentando identificar tantos idiomas quanto possível, e
por isso detectou e enumerou proporções menores das comunidades lingüísticas
maiores. No censo de Serra Leoa de 1848 havia 657 Hauçás e 163
Nupes, em uma população total de 13.273 ex-escravos.17 É provável que
houvesse pelo menos 1.200 pessoas do Sudão Central em Freetown em
1850 — quase 10% da população. Embora a amostragem de Koelle não
possa ser usada para estabelecer a importância relativa das diferentes categorias
étnicas da população escrava exportada de origem centro-sudanesa,
o inventário revela que grandes categorias como Hauçá, Nupe e Borno
incorporavam pessoas que não necessariamente teriam sido identificadas
como tais no Sudão Central.18
Muitos Iorubas foram escravizados na jihad que se disseminou pelo
sul, por Oyo e pela região norte-oriental Ioruba depois das 1817, especialmente
nas décadas de 20 e 30 do século XIX. É difícil mensurar a quantidade
de escravos Iorubas resultantes da guerra santa islâmica, embora os
recentes estudos de Francine Shields e Femi Kolapo indiquem que a jihad
teve um papel fulcral em muitas áreas.19 As guerras “Iorubas”, responsáveis
pela envergadura das exportações de escravo da Baía de Benin nos anos 30
e 40, estiveram relacionadas à jihad de Sokoto. O Emirado de Ilorin, que
possuía uma grande população Ioruba, interveio nas guerras entre seus vizinhos
sulistas, e neste processo foram feitos muitos escravos Ioruba.20 Além
disso, os emirados Nupes invadiram cidades e aldeias Iorubas setentrionais.
Por conseguinte, muitos Iorubas tiveram o seu cativeiro relacionado à expansão
e consolidação do Califado de Sokoto e, portanto, podem ser contados
entre os escravos originados no curso da jihad no Sudão Central.
O perfil sexual da população escrava exportada
Analisando inventários de plantações do Caribe francês do século
XVIII, David Geggus detectou uma alta incidência — por ele chamada de
• 1 7
“excepcional” — de homens Hauçás em relação a mulheres da mesma origem,
as quais deteriam uma participação “muito menor que a de outras
mulheres que entraram nas Américas através do tráfico atlântico”.21 Entre
os escravos listados nos registros franceses de Saint Domingue, 532 eram
de origem Hauçá, Nupe e Bariba — 444 homens e 88 mulheres, ou seja,
os homens constituíam 83% dos cativos registrados como originários do
Sudão Central. Dos 287 Hauçás, 207 (94%) eram do sexo masculino.22
Geggus não oferece dados sobre as origens étnicas de outros cativos centro-
sudaneses e, embora seus números derivem de fontes francesas, é provável
que os Hauçás importados na mesma ocasião pela Bahia conhecessem
proporções sexuais semelhantes. O significado disso pode ser capturado
através da comparação com as taxas de masculinidade, mais equilibradas,
observadas em outras categorias étnicas em Saint Domingue, conforme
análise do próprio Geggus: os Hauçás detinham as mais altas taxas
de masculinidade observadas entre as categorias étnicas importadas de toda
a África, e não apenas da Baía de Benin. A categoria étnica com taxa de
masculinidade mais próxima era a dos Nupes, com 76% dos 161 escravos
registrados. Os escravos Bariba também apresentavam uma grande taxa de
masculinidade — aproximadamente 61%.
O predomínio de homens era especialmente marcante no século XIX.
De acordo com Clapperton (1824), o Califado de Sokoto especializou-se
em exportar homens para as Américas e, em sua avaliação, “a maior parte
dos escravos masculinos jovens era levada para o sul e comercializada na
Baía de Benin”.23 A preponderância de homens também foi reconhecida
no Brasil, por Francis de Castelnau, que entrevistou 23 homens Hauçás
na Bahia, em fins da década de 1840. Tratava-se de prisioneiros de guerra
que viviam entre muitos outros cativos Hauçás: “la plupart sont employés
à Bahia comme nègres de palanquin”. Praticamente não havia mulheres e,
de fato, “il est au contraire tres rare d’y rencontrer des femmes de leur
nation”.24
De acordo com James Richardson, que estava em Zinder, a mais ocidental
província de Borno, em 1851,
os melhores escravos vão agora para Niffee [Nupe], para serem embarcados
para as Américas; examinados minuciosamente antes da partida, são prin1
8 • TO P O I
cipalmente homens de segunda, terceira e quarta classe...[ou seja, os
com]...começo de barba...[os]...sem barba...[e as]...crianças crescidas.25
Como Tambo concluiu em seu estudo sobre o comércio escravo do
Califado de Sokoto, os
homens jovens compreendiam a vasta maioria dos que se destinavam ao sul
[a partir do Califado de Sokoto]. Quase toda a região do Califado parece ter
contribuído para este comércio.26
Perfis biográficos de escravos destinados à venda a traficantes europeus
entre 1805 e 1850 atestam cabalmente ter sido masculina quase toda
a população exportada. Em nossa amostragem de 117 cativos, só sete eram
mulheres (cinco adultas e duas meninas). Esta alta freqüência de homens
não é de todo surpreendente, dada a tendência de coletar informação sobretudo
de indivíduos do sexo masculino. Contudo, a própria dificuldade
em localizar mulheres centro-sudanesas na população escravizada, sugere
que as proporções de homens na nossa amostragem talvez não estejam longe
do padrão prevalecente. Há outros exemplos, e talvez não seja gratuito que
Christopher Fyfe tenha detectado, para Freetown em 1837, que dois homens
Hauçás ali estavam depois de terem sido emancipados em Trinidad;
eles se mudaram para Badagri em 1839, junto com um homem Nupe.27
As mulheres, embora pouco numerosas, estavam majoritariamente em
sua melhor idade. A maior parte delas — talvez as mais cobiçadas — eram
exportadas do Sudão Central para o norte, através do Sahara, e não para o
litoral da Guiné. O mercado de concubinas para moças bonitas e mulheres
ainda jovens era bastante extenso no Norte da África, e mesmo no Sudão
Central.28 É possível que poucas jovens tenham sido vendidas para o sul, e
as que tiveram tal destino parecem ter sido aquelas acusadas de crimes graves,
especialmente assassinato. Por conseguinte, creio que minha amostragem
de 117 escravos reflete bem as taxas de masculinidade prevalecentes
no tráfico do Sudão Central para as Américas. Ela confirma o trabalho de
Eltis e Engerman, os quais demonstraram que as cargas humanas dos negreiros
europeus que partiram da costa africana tenderam a apresentar taxas
de masculinidade semelhantes, independentemente do lugar para o qual
se destinassem nas Américas.29 Sua análise indica que o perfil etário-sexual
• 1 9
dos escravos adquiridos pelos traficantes europeus na costa refletia-se de
modo mais ou menos idêntico em todo o litoral, mas até agora não tem
sido possível determinar com maior acuidade os perfis de idade e de sexo
dos cativos que, provenientes do interior distante, chegavam a estas costas.
Tabela 1:
Taxas (%) de masculinidade dos escravos exportados pela
Baía de Benin, 1800-1866
SEXO TOTAL LITORAL INTERIOR
Homens 330,000 215,000-262,000 71,000-118,000
Mulheres 164,000 158,000-160,000 4,000-6,000
Total 497,000 373,000-422,000 75,000-124,000
Taxas de Masculinidade 67 58-62 95
Fontes: ELTIS, David. “Fluctuations in the Age and Sex Ratios of Slaves in the
Nineteenth-Century Transatlantic Slave Traffic”. In: Slavery and Abolition, 7, 1986,
pp. 259, 264. As exportações do Sudão Central são calculadas entre 75 mil e 124 mil; cf.
LOVEJOY, Paul E. “Central Sudan and Atlantic Slave Trade”. In: HARMS, Robert W.
et al. Paths toward the Past: African Historical Essays in Honor of Jan Vansina. Atlanta:
African Studies Association Press, 1994, passim.
Minha amostragem de 117 escravos contribui para tornar possível a
comparação etário-sexual entre os cativos exportados através do litoral africano
e a população escrava proveniente do Sudão Central que se destinava
às Américas (cf. tabela 1). Tal cotejo sugere que o Sudão Central contribuiu
com uma proporção de homens maior do que a de qualquer outra
região africana. Deste modo, embora os traficantes europeus demonstrassem
um interesse de longo prazo em comprar escravos masculinos na melhor
idade produtiva possível, a ação dos provedores africanos também teve
um peso importante nas taxas etário-sexuais dos exportados e, por conseguinte,
o padrão ideal de demanda européia por homens raramente foi
satisfeito.30 Isto permitiu ao Sudão Central converter-se em uma fonte especializada
de escravos masculinos em idade produtiva para o mercado
americano. Como notou Eltis,
2 0 • TO P O I
as proporções de adultos masculinos entre os cativos Iorubas e Nupes na
amostragem [de libertos] de Serra Leoa para 1821-1822 eram extremamente
altas: para os Iorubas a taxa de masculinidade era de 61% (263 casos), e
para os Nupes alcançava 58% (45 casos), todas elas referentes a escravos
embarcados nos portos da Baía de Benin.31
Eltis não se deteve sobre os Hauçás e outras categorias étnicas, mas,
como vimos, as taxas de masculinidade entre os cativos originários de áreas
mais setentrionais eram ainda mais altas.
Escravos centro-sudaneses de sexo masculino foram detectados em
diversas partes de África Ocidental. Os holandeses recrutavam homens na
Costa de Ouro, inclusive cativos Hauçás, a fim de remetê-los para a
Indonésia como soldados de seu exército colonial.32 Havia 95 escravos do
Sudão Central entre os 1.170 cativos comprados por J. Heyducoper, feitor
holandês na Costa de Capa entre 1837 e 1842, para posterior despacho
ao exército colonial na Indonésia. O agente holandês foi mal-sucedido
em sua intenção de adquirir os escravos que queria, pois o Asantehene
Kwaku Dua não conseguiu (ou não quis) “produzir” cativos escravos na
quantidade requerida pelo batavo. O recrutamento militar obviamente
demandava apenas homens e, portanto, não era capaz de demonstrar a baixa
freqüência de escravas centro-sudanesas no país Achanti. Mas os registros
holandeses apontam para o fato de que nem todos os cativos de sexo masculino
originários do Sudão Central eram exportados para as Américas.
Deste modo, as estimativas referentes aos escravos centro-sudaneses que
alcançaram as Américas não representam fielmente as exportações do Sudão
Central como um todo.
Para o Daomé meridional e Lagos, ao longo da década de 1850, é
possível encontrar indícios de que nem todos os homens adultos foram
exportados para as Américas. Escravos registrados como tendo conseguido
escapar de Whydah para Lagos em 1858 eram “na maioria dos casos... [provenientes]...
em especial do interior da Hauçalândia e de Nuffee”, e parece
que muitos, senão todos, eram homens.33 Em Lagos, o Governador britânico,
Glover, recrutava cativos Hauçás do sexo masculino, alguns dos quais
fugitivos, para a força policial criada no nascente protetorado.34 Tais informações
acerca dos escravos fugitivos, das etnias dos libertos e do recrutaJ
I H A D E A E S C R A V I D Ã O • 2 1
mento militar no país Achanti e em Lagos ajudam a montar um padrão no
qual se reiteram homens centro-sudaneses, e demonstram de maneira aceitável
que escravos homens em idade produtiva eram comuns na costa. Este
perfil é congruente com o fato, bem conhecido, de que o tráfico atlântico
era parte integrante do tráfico global endógeno à África. Dados desta natureza
não permitem determinar com maior acuidade as taxas de masculinidade
dos centro-sudaneses que não deixaram a África Ocidental, mas eles
permitem intuir que os homens representaram uma grande parte deles.
Afinal, como Clapperton observou em 1824, “a maioria” dos cativos homens
em idade produtiva disponíveis para compra no Califado de Sokoto
foi enviada à costa atlântica para exportação para as Américas.35
Portanto, as altas taxas de masculinidade observadas na população
escrava exportada através da Baía de Benin na passagem do século XIX para
o seguinte era, em grande medida, resultante da reexportação de escravos
centro-sudaneses do sexo masculino, movimento que incluía a Iorubalândia
setentrional durante o longo colapso de Oyo. Homens em idade produtiva
provinham do interior em quantidades anormalmente altas, talvez porque
o alto preço obtido pelos homens pudesse cobrir os custos de transporte
do interior para o litoral, enquanto o custo do transporte de mulheres
era geralmente muito maior no mesmo percurso, já que em termos gerais
as escravas custavam um terço a mais do que os homens no interior.36 Não
surpreende, pois, que a maioria das mulheres escravizadas e transportadas
da Baía de Benin originavam-se de áreas relativamente próximas à costa.
Em síntese, havia pelo menos dois componentes demograficamente distintos
do tráfico na Baía de Benin: o primeiro, que trazia homens do interior
distante para a costa, e o segundo, que sugava para fora da África escravos
(homens, mulheres e crianças) do próprio litoral.
O perfil etário da população escravizada
A maioria dos escravos de sexo masculino e das poucas mulheres exportadas
pelo Sudão Central estava no auge de sua idade produtiva. De
100 cativos cujas idades podem ser estimadas, 83 (78 homens e cinco
mulheres) eram adultos no momento da escravização. Outros oito, todos
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homens, tinham entre 16 e 18 anos. Só oito crianças — duas meninas e
seis meninos — aparecem na amostragem, e a maioria dos homens adultos
consistia em guerreiros capturados em campos de batalha, como pode
ser visto na tabela 2.
Tabela 2:
Métodos de escravização de escravos de sexo masculino
exportados do Sudão Central para a Costa Atlântica
MÉTODO NÚMERO PORCENTAGEM
Guerra/jihad/pilhagem 64 75
Seqüestro 15 17
Ação judicial 3 3
Penhora 3 3
Venda de cativo doméstico 1 1
Escravo dado em pagamento de tributo 1 1
Sub-Total 87 100
Desconhecido 30
Total 117
Fonte: Apêndice.
De 87 escravos cujo método de escravização é conhecido, 64 (75%) o
foram através de guerras, pilhagens promovidas por Fulanis, ou por meio
da jihad propriamente dita. Outros 15 escravos (17%) haviam sido seqüestrados,
circunstância que poderia estar ou não relacionada à jihad. Em alguns
casos, a guerra parece ter estado relacionada a eventos secundários nas
fronteiras do Califado de Sokoto. Portanto, tomados em conjunto, 92%
dos escravos informavam terem sido apresados de forma violenta. Esta alta
porcentagem de escravização por meio da violência e a prevalência de homens
adultos na população exportada é significativa. Homens em idade
produtiva e com boa saúde também eram comuns entre os cativos provenientes
da Iorubalândia setentrional, embora não entre os Iorubas como
um todo. As guerras e pilhagems de Nupe e Ilorin talvez tenham sido resJ
I H A D E A E S C R A V I D Ã O • 2 3
ponsáveis por uma proporção significativa destes escravos. Em alguns casos
os cativos haviam sido soldados, e outros eram clérigos muçulmanos,
os quais freqüentemente se viam envolvidos com a jihad. Muitos cativos
tinham conhecimentos ao menos rudimentares do árabe, e alguns eram
na verdade muito instruídos, dado que também confirma a associação entre
a jihad e o cativeiro. De fato, vários estudiosos demonstram que a associação
entre pilhagems, ações militares e a jihad era freqüente.37
As observações de John Duncan, que estava em Whydah em meados
da década de 40 do século XIX, confirmam a prevalência de homens adultos
jovens entre a população cativa deportada do Sudão Central. Duncan
detectou ainda que muitos dos escravos que voltaram do Brasil depois de
1835 eram originários do interior:
Sei que muitos deles foram mandados para longe do Brasil por haverem
tentado fazer uma revolução [a revolta Malê de 1835] entre escravos [brasileiros],
o que os colocou contra os seus senhores. Estes [escravos] era geralmente
provenientes dos países Fula [o Califado de Sokoto] e Eyo [Oyo].
Muitos, aparentemente, foram capturados entre vinte e vinte quatro anos
de idade, e podem oferecer ricas informações sobre o caminho para Badagri,
de onde eles foram embarcados.38
Duncan também conheceu um homem de Borno que, enviado como
escravo para a Bahia na mocidade, acabou por regressar a Borno e, à procura
de sua casa, acabou descobrindo que sua cidade natal tinha sido destruída
duas vezes durante a jihad.39
Escravizações judiciais e por penhora, vendas já sob a condição de
cativos domésticos, e transferência como parte do pagamento de tributo
povoam as trajetórias de cerca de 10% dos escravos cujas histórias de vida
são conhecidas. Embora seja provável que muitas destas categorias não
estivessem diretamente relacionadas à jihad, algumas das escravizações por
via jurídica e outras certamente se associavam à campanha muçulmana e à
administração da justiça no Califado. Assim, entre as poucas mulheres
enviadas para as Américas, havia escravas suspeitas de assassinato, como
Clapperton observou em Kano, em 1824. De acordo com seu relato,
concubinas foram acusadas de estrangular seu amo, um comerciante de
Ghadames. Como resultado, acabaram deportadas para a costa, a fim de
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serem vendidas para as Américas. Ainda de acordo com Clapperton, tal caso
era semelhante a dois ou três antes ocorridos. O governador de Kano,
Ibrahim Dabo, indagou a Hadje Salah, chefe dos árabes, o que deveria ser
feito numa ocasião como esta, se vender as cativas para fora do país, ou
condená-las à morte. O comum nestes casos era enviar os criminosos à costa,
para a venda a traficantes.40
Esta informação é importante pois trata-se da única referência a mulheres
adultas, posto que concubinas, remetidas para a venda no litoral. A
maioria das escravas ia para o norte através do Sahara, mas os “criminosos”
constituíam uma categoria claramente separada. Há informações de que
cativos “refratários e intratáveis” eram vendidos para a costa, mas nenhuma
que mencione especificamente mulheres.41 Contudo, é provável que
muitas das mulheres centro-sudanesas vendidas para o outro lado do Atlântico
tenham se tornado escravas por meio de condenações, ou por suspeita
de crimes graves. De acordo com um funcionário britânico em Serra Leoa,
em 1821, “muitos nativos Hauçás, feitos prisioneiros pelos Foulahs [Fula,
i.e., Fulani ou Fulbe] e trazidos por terra à Costa de Ouro, eram logo vendidos
a traficantes europeus”.42 O escravo de Clapperton, Pasko, cujo nome
muçulmano era Abubakar, era originário de Gobir; ele fora capturado
durante a jihad, e de Katsina foi “vendido a um comerciante de Gonja”,
que então o vendeu a “um nativo Achanti”, o qual logo o revendeu a um
comerciante que ia para Whydah, onde ele finalmente foi embarcado em
um navio português.43 Dan Kano, cujo nome indicava que sua mãe era de
Kano, “nasceu em Brinee Yawoori [Birnin Yauri] e por lá permaneceu por
aproximadamente dezesseis ou dezessete anos” (ou seja, antes de 8 de abril
de 1821). Ele fora capturado pelos Fulani durante uma expedição comercial
“e levado à Costa de Ouro”, onde foi vendido a um navio português,
muito provavelmente na Baía de Benin.44 As fontes de Koelle incluíam
Ofen, ou Sam Pratt, cujo nome de nascimento era Yasgua, nativo de Nduro.
Com a idade 22 anos ele foi vendido pelo chefe da cidade e, por volta de
1843, acabou transferido para a costa através do país Achanti. Nduro situava-
se a sete dias de Rabba, a leste de Goali [Birnin Gwari?], sudoeste de
“Hauçá”, entre o país Kambali [Kambari] e Nupe.45 Outro dos informantes
de Koelle, Habu, ou Sam Jackson, nasceu em Kano, na década de 1820.