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- Versículos 24-31:
“Deus disse: “que a terra produza seres vivos segundo sua espécie: animais
domésticos, répteis, feras segundo sua espécie” e assim se fez. Deus fez as
feras segundo sua espécie, os animais domésticos segundo sua espécie e todos
os répteis do solo segundo sua espécie e Deus viu que isso era bom”. “Deus
disse: “façamos o homem à nossa imagem, como a nossa semelhança e que eles
dominem (sic) sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos,
todas as feras e todos os répteis que se rastejam sobre a terra”. “Deus criou o
homem à sua imagem, à imagem de Deus, Ele o criou, homem e mulher. Ele os
criou”. “Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei
a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, e sobre as aves do céu
e sobre todos os animais que rastejam sobre a terra”. Deus disse: “Eu vos dou
todas as ervas que dão semente, que estão sobre a face da terra; e todas as
árvores que têm frutas que dão sementes; isto será vosso alimento. A todas as
feras, a todas as aves do céu, a tudo o que rasteja sobre a terra e que é animado
de vida, eu dou como alimento toda a verdura das plantas”; e assim se fez. E
viu Deus tudo quanto tinha feito: e era muito bom. E houve uma tarde e uma
manhã: sexto dia”.
E a descrição da conclusão da criação na qual o autor enumera todas as
criaturas vivas não mencionadas anteriormente, e evoca as subsistências diversas
colocadas à disposição dos homens e dos animais.
O erro, acabamos de ver, é o de ter colocado o aparecimento dos animais
terrestres depois dos pássaros. Mas o aparecimento do homem sobre a
terra é situado corretamente depois da aparição das outras classes vivas.
A narração da criação termina pelos três primeiros versos do Capítulo 2:
“Assim foram concluídos o céu e a terra, com todo seu exército (sic).
Deus concluiu no sétimo dia a obra que Ele tinha feito e no sétimo dia Ele
descansou, depois de toda obra que Ele havia feito. Deus abençoou o sétimo dia
e o santifi cou, porque Ele tinha descansado depois de toda sua obra da criação.
Esta é a história do céu e da terra, quando foram criados.
Esta narração do sétimo dia pede comentários.
Primeiro, sobre o sentido das palavras. O texto é o da tradução da Escola
Bíblica de Jerusalém. “Exército” signifi ca aqui a multidão de seres criados,
segundo toda probabilidade. Quanto à expressão “Ele descansou”, é a maneira
43
do diretor da Escola Bíblica de Jerusalém traduzir a palavra hebraica “Shabbath”,
Que quer dizer exatamente “Ele repousou”, donde o dia do repouso judeu que
é transcrito em francês por “sábado”.
É bem evidente que esse “repouso” que Deus teria tido, depois de haver
efetuado um trabalho de seis dias, é uma lenda, mas ela tem uma explicação. É
preciso não esquecer que a narração da criação, examinada aqui, é a tradição
chamada Sacerdotal, escrita pelos padres ou escribas, herdeiros espirituais de
Ezequiel, o profeta do exílio na Babilônia, no século VI A.C Sabe-se que os
padres retomaram as versões Yahvista e Elohista do Gênesis, remodelaram-nas a
seu critério, segundo suas próprias preocupações, de onde R.P. de Vaux escreveu
que o caráter “legalista” era essencial. Demos acima um sumário disto.
Enquanto que o texto Yahvista da criação, de muitos séculos anterior ao
texto Sacerdotal, não fez nenhuma menção ao sábado de Deus fatigado de seu
trabalho da semana, o autor Sacerdotal o introduziu em sua narração. Ele o divide
em dias, com o sentido muito preciso de dias da semana, e o eixo sobre esse
descanso sabático, que é preciso justifi car aos olhos dos fi éis, sublinhando que
Deus foi o primeiro a respeitar. A partir dessa necessidade prática, a narração da
criação é conduzida com sentido aparente lógica religiosa, mas de maneira que
os dados da ciência permitem qualifi car de fantasista.
Essa integração no quadro de uma semana de fases sucessivas da criação,
pretendida pelo autor Sacerdotal, num objetivo de iniciação à observância religiosa,
não é defensável do ponto de vista científi co. Sabe-se perfeitamente, em
nossos dias, que a formação do universo e da terra, que será tratada na terceira
parte do livro, a propósito dos dados alcorânicos concernentes à criação, foi
efetuada por etapas, estendendo-se em períodos de tempos extremamente longos,
cuja duração os dados modernos não permitem determinar, nem mesmo
aproximadamente. Mesmo que a narração terminasse na tarde do 6° dia, e não
comportasse a menção do 7° dia do “sábado”, onde Deus teria repousado, mesmo
que, como para a narração alcorânica se estivesse autorizado a considerar
que se trata, de fato, de períodos não defi nidos, em vez de dias propriamente ditos,
a narração Sacerdotal não seria menos aceitável, porque a sucessão de seus
episódios está em contradição formal com as noções científi cas elementares.
Assim, a narração Sacerdotal da criação aparece como uma engenhosa
construção imaginativa, que tinha um objetivo muito diferente que o de fazer
conhecer a verdade.
44
SEGUNDA NARRAÇÃO
A segunda narração da criação contida no Gênesis, que faz ligação
sem transição e sem comentários à narração precedente, não serve às mesmas
críticas.
Lembremos que essa narração é de data muito mais antiga, de três
séculos aproximadamente. Ela é muito curta. Ela se estende muito mais sobre
a criação do homem e do paraíso terrestre que sobre a criação da terra e do
céu, que ela evoca muito sucintamente. “No tempo em que YAHVEH Deus fez a
terra e o céu, não havia ainda nenhum arbusto dos campos sobre a terra e nenhuma
erva dos campos tinha ainda brotado, porque YAHVEH Deus não tinha
feito chover sobre a terra, e não havia homem para cultivar o solo. Entretanto,
YAHVEH modelou o homem com a argila do solo e insufl ou em suas narinas
um sopro de vida, e o homem tornou-se um ser vivente” (Cap. 2:4b-7).
Tal é a narração Yahvista que fi gura nos textos bíblicos das Bíblias
que nós possuímos atualmente. Esta narração, à qual foi juntada mais tarde a
narração Sacerdotal, era inicialmente tão curta? Ninguém poderá dizer se o texto
Yahvista foi multiplicado no decorrer dos tempos; ninguém poderá dizer se
algumas linhas que nós possuímos representam bem tudo que poderia conter
o texto mais antigo da Bíblia sobre a criação.
Essa narração Yahvista não menciona a formação da terra propriamente
dita nem a do céu. Ela dá a entender que, no momento em que Deus
criou o homem, não havia vegetação terrestre (e não havia ainda chuva), ainda
que as águas, vindas da terra, tivessem coberto a face do solo. A sequência do
texto dá a confi rmação: Deus planta um jardim ao mesmo tempo em que o
homem é criado. Assim, portanto, o reino vegetal aparece ao mesmo tempo
que o homem sobre a terra, quando depois de muito tempo ela era portadora
de uma vegetação, embora não se possa dizer quantas centenas de milhões de
anos se passaram entre os dois acontecimentos.
Esta é a única crítica que se pode fazer ao texto YAHVISTA: não
situando no tempo a criação do homem em relação à formação do mundo e da
terra, que o texto Sacerdotal coloca na mesma semana, ele escapa de uma crítica
grave que se endereçava a esse último.
45
DATA DA CRIAÇÃO DO MUNDO
DATA DO APARECIMENTO DO HOMEM SOBRE A TERRA
Estabelecido conforme os dados do Antigo Testamento, o calendário
judeu situa essas datas com precisão: a segunda parte do ano cristão 1975 corresponde
ao início do ano 5.736 da criação do mundo. O homem, cuja criação
é de alguns dias posterior, possui, portanto, a mesma antiguidade cifrada em
anos pelo calendário judeu.
Há certamente uma correção a fazer em razão dos cálculos do tempo,
que se expressava inicialmente em anos lunares, enquanto o calendário ocidental
é baseado em anos solares. Mas a correção de 3% que será efetuada, se se
quer ser absolutamente exato, é de bem pouca importância. Para não complicar
os cálculos, é preferível se abster. O que conta aqui é uma ordem de grandeza e
pouco importa se o número de anos de milênio é calculado com uma margem
de erros de trinta anos. Para estar mais perto da verdade digamos que, nesta
avaliação hebraica, situa-se a criação do mundo por volta de trinta e sete séculos
A.C.
O que nos ensina a ciência moderna? Seria difícil de responder no
que concerne à formação do universo. Tudo o que se pode calcular é a época
da formação do sistema solar, que é susceptível de ser situado no tempo com
uma aproximação satisfatória. Calcula-se em quatro bilhões e meio de anos o
tempo que dela nos separa. Mede-se, então, a margem que separa a realidade,
hoje bem estabelecida (sobre a qual se discorda na terceira parte desta obra),
com os dados extraídos do Antigo Testamento. Eles decorrem do exame minucioso
do texto bíblico. O Gênesis fornece as indicações bem precisas sobre o
tempo transcorrido entre Adão e Abraão. Para o período que vai de Abraão à
era cristã, as informações fornecidas não são sufi cientes. E preciso completá-las
com outras origens.
DE ADÃO A ABRAÃO
O Gênesis fornece, em Suas genealogias nos Capítulos 4, 5, 11, 21 e
25, os dados extremamente precisos sobre todos os ancestrais de Abraão em
linha direta depois de Adão; fornecendo a duração da vida de cada um, a idade
do pai no nascimento do fi lho, ele permite facilmente estabelecer as datas do
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nascimento e da morte de cada ancestral em relação à criação de Adão, como
está indicado no quadro seguinte:
Data de nascimento Duração de vida Data de falecimento após
a criação de Adão
1 – Adão - 930 930
2 – Set 130 912 1042
3 – Enos 235 905 1140
4 – Cainan 325 910 1235
5 – Mahalael 395 895 1290
6 – Jared 460 962 1422
7 – Enoque 622 965 987
8 – Matusalém 687 969 1656
9 – Lameque 874 771 1651
10 – Noé 1056 950 2006
11 – Sem 1556 600 2156
12 – Arfaxade 1658 438 2096
13 – Selá 1693 433 2122
14 – Éber 1723 464 2187
15 – Pelegue 1757 239 1996
16 – Reú 1787 239 2026
17 – Serugue 1819 230 2049
18 – Nahor 1849 148 1997
19 – Terá 1878 205 2083
20 – Abraão 1948 175 2123
Este quadro é estabelecido segundo os dados provenientes todos do
texto Sacerdotal do Gênesis: é o único texto bíblico que dá as precisões desta
ordem. Deduz-se dele que Abraão, segundo a Bíblia, teria nascido no ano 1948
depois de Adão.
47
DE ABRAÃO À ERA CRISTÃ
A Bíblia não fornece, para este período, nenhuma informação cifrada,
susceptível de conduzir as avaliações tão precisas quanto as do Gênesis para
os descendentes de Abraão. Para avaliar o tempo que separa Abraão de Jesus,
é preciso recorrer a outras fontes. Situa-se atualmente a época de Abraão, em
cerca de dezoito séculos A.C., com pequena margem de erro. Este dado, combinado
com as indicações do Gênesis sobre o intervalo que separa Abraão de
Adão, levará a situar Adão por volta de trinta e oito séculos A.C Esta avaliação
é incontestavelmente falsa: sua inexatidão vem de erro, contido na Bíblia, sobre a
duração do período Adão-Abraão, sobre o qual a tradição judaica se fundamenta,
hoje, para estabelecer seu calendário. Em nossos dias, podemos contestar a
incompatibilidade dos defensores tradicionais da verdade bíblica com os dados
modernos dessas avaliações fantasistas, apresentados pelos sacerdotes judeus do
século VI A.C. Estas avaliações serviram de base, durante longos séculos, para
situar os acontecimentos da Antiguidade, no tempo, em relação a Jesus.
As Bíblias, editadas antes da época moderna, apresentam, geralmente,
aos leitores numa nota prévia explicativa, a cronologia dos acontecimentos
desenrolados desde a criação do mundo até a época quando esses livros foram
editados; as cifras variam um pouco segundo a época. Por exemplo, a Vulgate
Clementina de 1621 dava indicações, situando, todavia, Abraão um pouco antes,
e colocando a criação por volta do século XI A.C. A Bíblia Poliglota de Walton,
editada no século XVII, oferecia ao leitor, fora dos textos bíblicos em várias línguas,
quadros iguais àqueles estabelecidos aqui para os ascendentes de Abraão.
Um pouco, mais ou menos, todas as avaliações concordavam com as cifras
citadas aqui. Quando chegou a época moderna não foi mais possível ao editor
manter tais cronologias fantasistas, sem estar em oposição com as descobertas
científi cas, que colocam a criação em uma época bem anterior. Contentou-se
em suprimir tais quadros e notas prévias explicativas, mas eximiu-se de prevenir
‘o leitor da caducidade dos textos brancos, sobre os quais se tinha baseado
anteriormente para redigir tais cronologias, e quais os que não se poderia mais
considerar como que expressando a verdade. Preferiu-se jogar sobre os olhos
um véu pudico e encontrar fórmulas de sábia dialética para que o texto fosse
aceito tal como era ele outrora, sem nenhuma diminuição. É assim que as genealogias
do texto Sacerdotal da Bíblia encontram sempre uma saída honrosa,
ainda que não se possa mais racionalmente, no século XX, contar o tempo
fundamentando-se em tal fi cção.
48
Quanto à data do aparecimento do homem sobre a terra, os dados
científi cos modernos não permitem sua defi nição, a não ser além de um certo
limite. Pode-se estar convencido de que o homem existia sobre a terra, com
sua capacidade de inteligência e de ação, que o diferencia de seres vivos que
parecem anatomicamente vizinhos, posteriormente a uma data calculável, mas
ninguém pode situar de maneira precisa a data de seu aparecimento. Pode-se
afi rmar, todavia, hoje, que foram encontrados vestígios de uma humanidade
pensante e atuante, cuja antiguidade se calcula por unidades da ordem de dezenas
de milhares de anos.
Esta data aproximada se refere ao tipo humano pré-histórico, descoberto
como sendo o mais recente, do gênero neo-antrópico (o homem de
Cro-Magnon). Na verdade, outras descobertas de restos aparentemente humanos
foram feitas em múltiplos pontos da terra, concernentes a tipos menos
evoluídos (paleo-antrópicos), cuja ordem de grandeza de antiguidade poderia
ser de uma centena de milhares de anos. Mas, seriam eles homens autênticos?
Não importa o que sejam, os dados científi cos concernentes aos neo-
-antrópicos são sufi cientemente precisos para situá-los muito além de uma época
onde o Gênesis situa os primeiros homens. Há, portanto, incompatibilidade
manifesta do que se pode deduzir dos dados numéricos do Gênesis quanto à
data do aparecimento do Homem sobre a terra, e aos melhores conhecimentos
científi cos estabelecidos em nosso tempo.
O DILÚVIO
Os Capítulos 6, 7 e 8 do Gênesis são consagrados à narração do dilúvio.
Exatamente, há duas narrações não colocadas lado a lado, mas dissociadas
em passagens intricadas umas nas outras, com uma aparência de coerentes na
sucessão dos diversos episódios. Há, em realidade, nesses três capítulos, contradições
fl agrantes. Aqui, ainda, elas se explicam pela existência de duas fontes
claramente distintas: a fonte Yahvista e a fonte Sacerdotal.
Como já foi visto, elas formavam uma bagunça contraditória: cada
texto original foi decomposto em parágrafos ou em frases, os elementos de
uma fonte alternando com os elementos de outra fonte, de forma que se possa,
49
por toda a narração de uma fonte a outra, dezessete vezes em aproximadamente
cem linhas do texto francês.
A narração é, num conjunto, o que segue:
Sendo a perversão dos homens geral, Deus decidiu destrui-los com
todos os outros seres vivos. Ele preveniu Noé e lhe ordenou a construção de
uma Arca onde faria entrar sua mulher, seus três fi lhos e suas três mulheres, assim
como outros seres vivos. Para estes últimos, as duas origens são diferentes:
uma passagem da narração (de origem Sacerdotal) indica que Noé tomará um
casal de cada espécie; depois, na passagem seguinte (de origem Yahvista), Deus
ordena que tomasse, dentre os animais ditos puros, sete de cada espécie, macho
e fêmea, e, dentre os animais ditos impuros, um só par. Mas, um pouco mais
adiante, é determinado que Noé não fará entrar efetivamente na arca apenas um
casal de cada animal. Os especialistas, como R.P de Vaux, afi rmam que se trata
aqui de uma passagem de narração Yahvista modifi cada.
Um parágrafo (de origem Yahvista) indica que o agente do dilúvio é a
água da chuva, mas outra causa do dilúvio (de origem Sacerdotal) é apresentada
como dupla: a água da chuva e das fontes terrestres.
A terra inteira fi cou submersa até o cimo das montanhas. Toda vida
foi aniquilada. Depois de um ano, Noé saiu da arca, que estava pousada sobre o
monte Ararat depois da baixa das águas.
Acrescentamos ainda que, segundo as informações, o dilúvio tem
uma duração diferente: quarenta dias de elevação para o texto Yahvista, cento e
cinquenta dias para o texto Sacerdotal.
O texto Yahvista não determina em que época se coloca o acontecimento
na vida de Noé, mas o texto Sacerdotal o situa quando Noé teria
seiscentos anos. Este mesmo texto dá as indicações, por sua genealogia, sobre
sua localização em relação a Adão e em relação a Abraão. Tendo Noé nascido,
segundo cálculos feitos após as indicações do Gênesis, 1056 anos depois de
Adão (ver o quadro dos ancestrais de Abraão), o Dilúvio aconteceu, portanto,
1655 anos após a criação de Adão. Em relação a Abraão, o Gênesis situa o dilúvio
292 anos antes do nascimento desse patriarca.
Ora, segundo o Gênesis, o dilúvio teria atingido todo o gênero
humano e todos os seres vivos criados por Deus teria sido destruídos sobre a
50
terra: a humanidade seria reconstruída a partir dos três fi lhos de Noé, de suas
mulheres, de tal maneira que, quando, cerca de três séculos mais tarde, nascesse
Abraão, ele encontraria uma humanidade refeita em sociedade. Como, em tão
pouco tempo, esta reconstituição poderia ter se produzido? Esta simples constatação
tira do texto verossimilhança.
Mais tarde, os dados históricos demonstram sua incompatibilidade
com os conhecimentos modernos. Com efeito, situa-se Abraão nos anos 1800-
1850 A.C Se o dilúvio teve lugar, como o Gênesis sugere, por suas genealogias,
aproximadamente três séculos antes do Abraão, seria necessário colocá-lo no
século XXI ou XXII A.C. É a época em que conhecimentos históricos modernos
permitem afi rmar: já fl oresciam civilizações em vários pontos da Terra e
cujos vestígios passaram à posteridade.
É, por exemplo para o Egito, o período que precede o Médio Império
(2100 A.C.), aproximadamente a data do primeiro período intermediário
antes da 11ª dinastia. É na Babilônia a 3ª dinastia de Ur. Ora, sabe-se perfeitamente
que não houve interrupção nessas civilizações, portanto, nada de destruição
envolvendo toda a humanidade como a Bíblia quer.
Não se pode, por conseguinte, considerar os três textos bíblicos
como trazendo aos homens uma revelação dos fatos, conforme a verdade. Forçado
é admitir, se se quer objetivo, que os textos em questão, chegados até nós,
não representam a expressão da verdade. Deus teria revelado outra coisa que
não a verdade? Não se pode conceber, com efeito, a ideia de um Deus instruindo
os homens com a ajuda de fi cções e, mais ainda, de fi cções contraditórias.
Chega-se então, naturalmente, a levantar a hipótese de uma alteração pelos
homens, ou bem de tradições verbalmente de geração a geração, ou então dos
textos quando essas tradições foram fi xadas. Quando se sabe que uma obra
como o Gênesis foi modifi cada pelo menos duas vezes, o espaço de três séculos,
como admirar-se de se encontrar nela dúvidas ou narrações incompatíveis com
a realidade das coisas, depois que os progressos dos conhecimentos humanos
permitiram, se não tudo saber, pelo menos, possuir de certos acontecimentos
um conhecimento sufi ciente para que se possa julgar o seu grau de compatibilidade
com as narrações antigas concernentes a estes acontecimentos? Haveria
coisa mais lógica do que levar-se em conta esta interpretação dos erros dos
textos bíblicos que refl etem apenas posições dos homens? É pena que ela não
seja considerada pela maioria dos comentadores, tanto judeus como cristãos.
Tampouco, os argumentos invocados por eles merecem que se lhes dê atenção.
51
POSIÇÃO DOS AUTORES CRISTÃOS DIANTE DOS
ERROS CIENTIFICOS DOS TEXTOS BIBLICOS:
SEU EXAME CRÍTICO
Causa perplexidade a diversidade das reações dos comentadores cristãos
perante a existência desse acúmulo de erros, incertezas e contradições.
Alguns o admitem em parte e não hesitam, em suas obras, em abordar problemas
espinhosos. Outros se desviam alegremente das afi rmações inaceitáveis,
ocupam-se em defender o texto palavra por palavra e procuram convencer
com declarações apologéticas e grande esforço de argumentos frequentemente
inesperados, esperando fazer esquecer o que a lógica rejeita.
R.P. de Vaux admite, em sua Introdução à Tradução do Gênesis a existência
dessas críticas e concorda até mesmo que elas são bem fundamentadas,
mas, para ele, a reconstituição objetiva dos acontecimentos do passado é sem
interesse. Que a Bíblia tenha tomado, escreve ele em suas anotações, “a lembrança
de uma ou várias inundações desastrosas do vale do Tigre e do Eufrates, que
a tradição tivesse aumentado as dimensões de um cataclismo universal” pouco
importa; “somente, e é o essencial, o autor sacro revestiu essa lembrança com
um ensinamento eterno sobre a justiça e a misericórdia de Deus sobre a malícia
do homem e a salvação dada ao justo”.
Assim é justifi cada a transformação de uma lenda popular em um
acontecimento em escala divina - e como tal propõe-se a oferecer à crença dos
homens – a partir do momento em que um autor a utilizou para lhe servir
de ilustração a um ensinamento religioso. Uma tal posição apologética justifi ca
todos os abusos humanos na confecção das escrituras, de onde se pretende
que elas sejam sagradas e contenham a Palavra de Deus. Admitir tais ingerências
humanas no divino é cobrir todas as manipulações humanas dos textos bíblicos.
Sob uma visão teológica, toda manipulação torna-se legítima e justifi cam-se,
assim, as dos autores “Sacerdotais” do século VI, com preocupações legalistas
que culminaram nas narrações fantasistas que se conhecem.
Um número importante de comentadores cristãos achou engenhoso
explicar os erros, incertezas e contradições nas narrações bíblicas, dando prioridade
à desculpa que tinham os autores bíblicos de se expressar em função
dos fatores sociais de uma cultura ou mentalidades diferentes, e disso resultou
a defi nição de “gêneros literários” particulares. A introdução desta expressão
52
na dialética sutil dos comentadores dissimula então, todas as difi culdades. Toda
contradição entre dois textos teria como explicação a diferença na maneira
de se expressar de cada autor, seu “gênero literário” particular. Certamente, o
argumento não é admitido por todos, pois, verdadeiramente, falta-lhe seriedade.
Ele não está, entretanto, totalmente em desuso em nossos dias, e ver-se-á, a propósito
do Novo Testamento, de que maneira abusiva se tentam explicar assim
as contradições fl agrantes dos Evangelhos.
Uma outra maneira de fazer aceitar o que a lógica rejeitaria, se se
aplicasse ao texto litúrgico, é envolver o texto em questão de considerações
apologéticas. A atenção do leitor é desviada do problema crucial da verdade
mesma da narração, para se fi xar em outros problemas.
As refl exões do cardeal Daniélon sobre o Dilúvio, apresentado na
revista Dieu Vivant9 sob título “Dilúvio, Batismo e Julgamento”, decorrem desse
modo de expressão. Ele escreve: “A mais antiga tradição da Igreja viu na teologia
do Dilúvio uma fi gura de Cristo e da Igreja”. “É um episódio de uma signifi cação
eminente”... “um julgamento que atinge a raça humana inteira”. Após ter citado
Orígenes que, nas suas Homélias sobre Ezechiel, fala do “naufrágio do universo
inteiro salvo na Arca”, o cardeal evoca o valor do número oito “expressando o
número de pessoas salvas pela Arca (Noé e sua mulher, seus três fi lhos e suas
três esposas)”. Ele retoma por sua conta o que escrevia Justino no “Dialogo”.
“Eles ofereciam o símbolo do oitavo dia, no qual nosso Cristo apareceu ressuscitado
dos mortos”, e ele escreveu: “Noé, primogênito de uma nova criação,
uma imagem do Cristo que realizou o que Noé havia representado”. Ele prossegue
a comparação entre, de uma parte, Noé, salvo pela madeira da Arca e
pela água que faz fl utuar e, de outra parte, a água do batismo (“água do Dilúvio
de onde nasce uma humanidade nova”), e a madeira da Cruz. Ele insiste sobre
o valor desse simbolismo e conclui dando importância à riqueza espiritual e
doutrinal do sacramento do Dilúvio” (sic).
Haveria muito a dizer sobre todas essas aproximações apologéticas.
Elas comentam - lembremo-nos - um acontecimento, cuja realidade não é defensável,
em escala universal e na época em que a Bíblia o situa. Com um comentário
como aquele do Cardeal Daniélon, volta-se à época medieval, em que
era preciso receber o texto como ele era e em que toda interpretação, que não
a conformista, estava fora de propósito.
E reconfortante, entretanto, constatar que anteriormente a essa época
do obscurantismo imposto, podem-se depreender tomadas de posição bem
9 - N° 38, 1947, p. 95-112.
53
lógicas, como a de Santo Agostinho que procede de uma refl exão singularmente
adiantada para seu tempo.
A época dos Padres da Igreja, os problemas de crítica textual tinham
sido colocados, pois Santo Agostinho os evoca em sua Carta n° 82, da qual a
passagem mais características é a seguinte:
“Foi unicamente nesses livros da Escritura que chamamos canônicos
que aprendi a dar uma atenção e um respeito tais que eu creio fi rmemente,
que nenhum dos seus autores se enganou, escrevendo. Quando nesses livros
eu reencontro uma afi rmação que parece contradizer a verdade, então não
duvido que, ou bem o texto (de meu exemplar) não seja falível, ou então que
o tradutor não reproduziu corretamente o texto original, ou ainda que minha
inteligência não seja defi ciente”.
Para Santo Agostinho, não era concebível que um texto sacro pudesse
conter erros. Santo Agostinho defi nia muito claramente o dogma da
inerência. Diante de uma passagem parecendo contrária à verdade, ele visualizava
a pesquisa de uma causa e não excluía a hipótese de uma origem humana. Uma
atitude assim é a de um crente dotado de senso crítico. Na época de Santo
Agostinho, não existia a possibilidade de confrontação entre o texto bíblico e
a ciência. Uma ampla visão idêntica à sua permitiria superar muitas difi culdades
levantadas em nossa época pela confrontação de certos textos bíblicos com os
conhecimentos científi cos.
Os especialistas de nosso tempo se esforçam, muito ao contrário, em
defender o texto bíblico de toda acusação de erro. R.P. de Vaux nos dá, na sua
Introdução ao Gênesis, as razões que o levaram a essa defesa a qualquer preço
do texto, mesmo se ele é manifesta, histórica ou cientifi camente inaceitável. Ele
nos recomenda não olhar a história bíblica “segundo as regras do gênero histórico,
como os modernos praticam”, como se pudessem existir várias maneiras
de escrever a história. Contada de maneira inexata, a história fi ca - todo mundo
admite - um romance histórico. Mas aqui, ela escapa às normas decorrentes de
nossas concepções. O comentador bíblico recusa todo controle das narrações
bíblicas pela geologia, pela paleontologia, e pelos dados da pré-história. “A Bíblia
não depende, escreve ele, de nenhuma dessas disciplinas, e se quisesse confrontá-
la com os dados dessas ciências, não se poderia chegar senão a uma oposição
irreal ou a um conformismo fi ctício10”. É preciso notar que suas refl exões são
feitas a propósito do que no Gênesis não está de modo algum de acordo com
os dados da ciência moderna, em especial os onze primeiros capítulos. Mas,
10 - Introdução ao Gênesis, p. 35.
54
se algumas narrações são perfeitamente verifi cadas em nossos dias, nesse caso
certos episódios dos tempos dos patriarcas, o autor não deixa de invocar os
conhecimentos modernos para apoiar a verdade bíblica. Ele escreve11:
“As suspeitas que recaíam sobre essas narrações deveriam ceder diante
do testemunho favorável que lhes trazem a história e a arqueologia orientais”.
De outro modo: se a ciência é útil para confi rmar a narração bíblica, nós a
invocamos, mas se ela a invalida, fazer-lhe referência não é admissível.
Para conciliar o inconciliável, isto é, a teoria da verdade da Bíblia com
o caráter inexato de certos fatos relatados nas narrações do Antigo Testamento,
teólogos modernos aplicaram-se em rever os conceitos clássicos da verdade.
Seria sair do plano deste livro, fazer uma exposição detalhada das considerações
sutis desenvolvidas longamente nas obras que tratam da verdade da Bíblia,
como a de O. Loretz (1972), Qual é a Verdade da Bíblia?12. Contentemo-nos em
mencionar simplesmente seu julgamento concernente à ciência:
O autor nota que o Concílio Vaticano II “evitou fornecer regras para
distinguir entre erro e verdade na Bíblia. Considerações fundamentais mostram
que isto é impossível, pois que a Igreja não pode decidir da verdade e da falsidade
dos métodos científi cos, de tal maneira que ela resolveria, em princípio e
de modo geral, a questão da verdade da Escritura”.
E bem evidente que a Igreja não saberia se pronunciar sobre o valor
de um “método” científi co como meio de acesso ao saber. Trata-se aqui de outra
coisa. Não se trata de discutir as teorias, mas de fatos bem estabelecidos. E
necessário ser um grande clérigo, em nossa época, para saber que o mundo não
foi criado e que o homem não apareceu sobre a terra há trinta e sete ou trinta
e oito séculos, e afi rmar que essa estimativa saída das genealogias bíblicas possa
ser falsa sem risco de se enganar? O autor citado aqui não poderia ignorá-la.
Suas afi rmações sobre a ciência não têm outro fi m senão desviar o problema,
para não ter de tratá-lo como deveria ser tratado.
A lembrança de todas essas posições, tomadas pelos autores cristãos
diante dos erros científi cos dos textos bíblicos, ilustram bem o mal-estar que
elas trazem, e a impossibilidade de defi nir uma posição lógica que não a de reconhecimento
de sua origem humana, e da impossibilidade de as aceitar como
11 - Introdução ao Gênesis, p. 34.
12 - Do Centurion, Paris.
55
fazendo parte de uma revelação.
Este mal-estar reinante nos meios cristão, referente à revelação, foi
traduzido por ocasião do Concílio Vaticano II (1962-1965), onde foi preciso nada
menos que cinco redações, para que se chegasse a um acordo sobre o texto
fi nal, depois de três anos de discussões, e que fi ndou “esta dolorosa situação
que ameaçou enterrar o Concílio”, segundo a expressão de Monsenhor Weber,
na sua introdução do documento conciliar n°94 sobre a Revelação13.
Duas frases desse documento, concernentes ao Antigo Testamento
(Cap. IV, p. 53), evocam as imperfeições e a caducidade de certos textos, de uma
maneira que não permite nenhuma contestação:
“Considerada a situação humana que precede a salvação instaurada
por Cristo, os livros do Antigo Testamento permitem a todos conhecer quem é
Deus e quem é o homem, assim como a maneira pela qual Deus, em sua justiça
e em sua misericórdia, age com os homens. Esses livros, apesar do que contenham
de “imperfeito” e de “caduco” (sic), são, entretanto, testemunhas de uma
verdade pedagógica divina”.
Não seria melhor dizer, pelos qualifi cativos de “imperfeito” e de “caduco”
aplicados a certos textos, que estes podem prestar-se à crítica e até serem
abandonados? O princípio está claramente admitido. Este texto faz parte de
uma declaração conjunta que, por ter sido defi nitivamente votada por 2.344
votos contra 6, não perfaz essa aparente quase-unanimidade. Com efeito, encontramos
nos comentários do documento ofi cial, sob a assinatura de Monsenhor
Weber, uma frase que corrige manifestamente a afi rmação da caducidade de
certos textos, contidos na declaração solene do Concílio: “Sem dúvida certos
livros da Bíblia israelita têm um alcance temporário e contêm neles qualquer
coisa imperfeita”.
“Caduco”, expressão da declaração ofi cial, não é seguramente sinônimo
de “alcance temporário”, expressão do comentador, e, quanto ao epíteto
“israelita”, curiosamente acrescido por este último, ele sugeriria que o texto
conciliar pôde criticar a única versão em hebreu, o que não é exata pois foi
simplesmente o Antigo Testamento que, por ocasião desse Concílio, foi objeto
de um julgamento concernente à imperfeição e à caducidade de algumas de
suas partes.
13 - Do Centurion, 1966, Paris.
56
CONCLUSÕES
É preciso olhar as Escrituras bíblicas, não as revestindo artifi cialmente
com qualidade que se queira que elas possuam, mas examinando objetivamente
o que elas são. Isto implica não somente o conhecimento dos textos, mas ainda
da sua história. Esta última permite, com efeito, fazer uma ideia das circunstâncias
que conduziram aos remanejamentos textuais ao longo dos séculos, à lenta
formação da compilação tal, como nós a possuímos, com subtrações e adições
numerosas.
Estas noções tornaram perfeitamente plausível que se possa encontrar
ao Antigo Testamento, em versões diferentes de uma mesma narração,
contradições, erros históricos, dúvidas e incompatibilidades com os dados científi
cos bem estabelecidos. Estas últimas são absolutamente naturais em todas as
obras humanas antigas.
Como não encontrá-las nos livros escritos sob as condições em que
foi elaborado o texto bíblico?
Antes mesmo que os problemas científi cos pudessem ser colocados,
numa época em que não se podia, portanto, julgar senão duvidosos ou contradições,
um homem de bom senso como Santo Agostinho, considerando que
Deus não podia ensinar aos homens o que não correspondia à realidade, colocou
o princípio da impossibilidade da origem divina de uma afi rmação contrária
à verdade. Ele estava prestes a excluir de todo o texto sacro o que lhe pareceu
que, por esse motivo, devia ser excluído.
Mais tarde, em uma época em que se constatou a incompatibilidade
com os conhecimentos modernos de certas passagens da Bíblia, houve recusa
em seguir tal atitude. Assistiu-se então â eclosão de toda uma literatura, visando
a justifi car a conservação na Bíblia, contra tudo e contra todos, dos textos que
ali não teriam mais o seu lugar.
O Concílio Vaticano II (1962-1965) atenuou fortemente essa intransigência,
introduzindo uma ressalva para “Os livros do Antigo Testamento que
contêm o imperfeito” e o “caduco”. Permaneceu, ela um voto piedoso ou será
ela seguida de uma mudança de atitude perante o que não é mais aceitável no
século XX, nos livros que eram destinados a ser, fora de toda manipulação humana,
apenas “as testemunhas de uma verdadeira pedagogia divina”?
57
EVANGELHO
INTRODUÇÃO
Muitos leitores dos Evangelhos fi cam embaraçados e mesmo descontentes,
quando refl etem sobre o sentido de certas narrações, quando efetuam
comparações entre diferentes versões do mesmo acontecimento, que encontram
narrados em vários Evangelhos. É a constatação que faz em seu livro
Iniciação ao Evangelho14, R.P. Roguet. Com a grande experiência que lhe confere
o fato de ter sido, durante longos anos, encarregado de responder em um seminário
católico a seus leitores dos Evangelhos, desorientados pelos textos, R.P.
Roguet pôde avaliar, em seus correspondentes, a importância das perturbações
provocadas por suas leituras. Ele nota que os pedidos de esclarecimento de
seus interlocutores, que pertenciam a meios sociais e culturais muito variados,
versavam sobre textos “considerados obscuros, incompreensíveis, quando não
contraditórios, absurdos ou escandalosos”. Não há dúvida, portanto, de que
a leitura dos textos completos dos Evangelhos é susceptível de perturbar
profundamente os cristãos. Uma tal observação é de data recente: o livro de R.P.
Roguet foi publicado em 1973. Em tempos que não são tão distantes, a grande
maioria dos cristãos não conhecia os Evangelhos, a não ser trechos escolhidos,
lidos nos ofícios ou comentados em púlpito. O caso dos protestantes posto
à parte, não era comum ler os Evangelhos em sua totalidade foram dessas circunstâncias.
Os manuais de instrução religiosa só continham extratos: o texto
in extenso não circulava muito. Ao longo de meus estudos secundários em um
estabelecimento católico, eu tive em mãos as obras de Virgílio e de Platão, mas
não o Novo Testamento.
E, no entanto, o texto grego dele teria sido bem instrutivo: eu compreendi,
muito tarde, porque não nos davam para fazer traduções de livros santos
cristãos. Eles poderiam nos levar a colocar aos nossos mestres questões às
quais eles fi cariam embaraçados em responder. Essas descobertas que se fazem,
se se tem espírito crítico, lendo in extenso aos Evangelhos, levaram a Igreja a
intervir e a ajudar seus leitores a superar seu embaraço. “Muitos dos cristãos
têm necessidades de aprender a ler o Evangelho”, constata R.P. Roguet. Que se
esteja ou não de acordo com as explicações dadas, o mérito do autor é grande
por enfrentar esses delicados problemas.
14 - Edi ons de Seuil, 1973.
58
Não é, infelizmente, sempre assim nos inúmeros escritos sobre a Revelação
Cristã.
Nas edições da Bíblia destinadas a uma grande divulgação, as notícias
introdutórias expõem, o mais comumente, um conjunto de considerações, que
tenderiam a persuadir o leitor de que os Evangelhos não têm muitos problemas
quanto à personalidade dos autores dos diferentes livros, à autenticidade
dos textos e ao caráter verídico da variação. Perante tantas lacunas existentes a
propósito dos autores, de cuja identidade não se pode, de modo algum, estar
seguro, que precisões encontramos nesse gênero de notícias, que apresentam
frequentemente como certo o que não passa de simples hipótese, afi rmando
que tal evangelista foi testemunha ocular dos fatos, enquanto que as obras
especializadas pretendem o contrário? Reduziram completa e exageradamente
os detalhes entre o fi m do ministério de Jesus e o aparecimento dos textos.
Queriam fazer crer em uma só redação a partir de uma tradição oral, enquanto
que os remanescentes dos textos são demonstrados por especialistas. Fala-se,
aqui e ali, de certas difi culdades de interpretação, mas se desliza sobre contradições
manifestas, saltando aos olhos de quem refl ete. Nos pequenos dicionários
explicativos colocados em anexo, a título de complementos das preliminares
tranquilizadoras, constata-se sempre que dúvidas, contradições ou erros fl agrantes
são escamoteados e dissimilados sob um hábil argumento apologética.
Um tal estado de coisas, que evidencia o caráter capital de seus comentários, é
consternador.
As considerações desenvolvidas aqui vão surpreender, sem dúvida, aqueles
meus leitores ainda não advertidos desses problemas. Assim também, antes
de entrar no centro vital do assunto, eu desejo ilustrar, desde já, meu propósito,
por exemplo, que me parece perfeitamente demonstrável.
Nem Mateus, nem João falam da Ascensão de Jesus. Lucas a situa no
dia da Ressurreição em seu Evangelho e, quarenta dias mais tarde, no Ato dos
Apóstolos do qual ele seria autor. Quanto a Marcos, ele a menciona (sem
precisar a data), num fi nal atualmente considerado como não autêntico. A Ascensão
não tem, portanto, nenhuma base escriturária sólida. Os comentadores
abordam, entretanto, esta importante questão com incrível leviandade.
A Tricot, no seu Pequeno Dicionário do Novo Testamento da Bíblia
de Crampon, obra de grande difusão15, não consagra um artigo à Ascensão.
A Sinopse dos Quatro Evangelhos de R.P. Benoit e R.P. Boismard, professores
15 - Desclée et Cie, 1960.
59
da Escola de Jerusalém16, nos ensina em seu tomo II, páginas 451 e 452, qve a
contradição, em Lucas, entre seu Evangelho e os Atos dos Apóstolos se explica
por um “artifício literário”. Compreenda quem puder!
Muito verossimilmente, R.P. Roguet, em sua Iniciação do Evangelho de
1973 (p. 187), não foi seduzido por tal argumento. Mas a explicação que nos
oferece é, pelo menos, singular:
“Aqui, como em muitos casos semelhantes, o problema não parece insolúvel
a não ser que se tome ao pé da letra materialmente as afi rmações da
Escritura, esquecendo-se sua signifi cação religiosa. Não se trata de dissolver a
realização dos fatos num simbolismo inconsciente, mas de pesquisar a intenção
teológica do que nos revelam os mistérios, nos livrando dos fatos sensíveis, dos
signos apropriados ao enraizamento carnal de nosso espírito”.
Como se contentar como semelhante exegese? Fórmulas apologéticas
desse gênero só podem convir a incondicionais.
O interesse da citação de R.P. Roguet reside igualmente em seu parecer
de que há “muitos casos semelhantes” ao da ascensão nos Evangelhos. É, portanto,
necessário abordar o problema globalmente, a fundo, em toda a objetividade.
Parece prudente pesquisar as explicações, no estudo das condições em que
foram escritos os Evangelhos, assim como do clima religioso que reinava nessa
época. A colocação em evidência das reformulações das redações iniciais, efetuadas
a partir das tradições orais, as alterações dos textos desde a transmissão
até nós, torna muito menos surpreendente a presença de passagens obscuras,
incompreensíveis, contraditórias, dúvidosas, podendo ir, às vezes, até a obscuridade,
ou incompatíveis com as realidades demonstradas em nossos dias pelo
progresso científi co. De tais constatações são a marca de participação humana
na redação, depois na modifi cação posterior dos textos.
Faz alguns decênios, é um fato, tomou-se interesse pelo estudo das Escrituras
sob um espírito de pesquisa objetiva. No livro recente, Fé na Ressureição,
Ressurreição da Fé17, R.P. Kannengiesser, professor no Instituto Católico de Paris,
dá um resumo dessa modifi cação profunda nestes termos: “A massa dos fi éis
sabe apenas que uma revolução se operou nos métodos de interpretação bíblica,
desde a época de PIO XII18”. A “revolução” da qual o autor fala é, pois, recente.
Ela começa a ter prolongamento no ensinamento dos fi éis, mais ou menos, da
16 - Edição du Cerf, 1972.
17 - Beauchesne, coll. “Le Point Théologique”, 1974.
18 - Pio XII reina de 1939 a 1958.
60
parte de certos especialistas animados por esse espírito de renovação. “Uma
mudança das perspectivas mais fi rmes da tradição pastoral, escreve o autor, se
encaminha de algum modo para esta revolução dos interpretativos”.
R.P. Kannengiesser advertiu que “não é preciso mais tomar ao pé da letra”
os fatos relatados a respeito de Jesus pelos Evangelistas, “escritos de circunstâncias”
ou “de combate”, nos quais autores “consignam por escrito as tradições de
suas comunidades sobre Jesus”. A propósito da ressurreição de Jesus, assunto de
livro, ele sublinha que a nenhum autor dos Evangelhos pode se atribuir a qualidade
de testemunha ocular, dando a entender que, para o resto da vida pública
de Jesus, deve ter acontecido o mesmo, pois nenhum dos apóstolos - Judas à
parte – segundo os Evangelhos, separou-se do Mestre, a partir do momento
em que ele a exerceu até as suas últimas manifestações sobre a Terra.
Estamos, portanto, muito longe das posições tradicionais ainda afi rmadas
com solenidades pelo Concílio Vaticano II, há precisamente dez anos, e que as
obras modernas de vulgarização, destinadas aos fi éis, ainda retomam. Mas, pouco
a pouco, a verdade vem à luz.
Não é fácil apanhá-la, devido à pesada carga de uma tradição tão duramente
defendida. Desejando-se liberá-la, é preciso retomar o problema peia
base, isto é, examinar de início as circunstâncias que marcaram o nascimento do
cristianismo.
RETROSPECTO HISTÓRICO
- O Judeu-Cristianismo e São Paulo -
A maior parte dos cristãos acredita que os Evangelhos foram escritos
por testemunhas diretas da vida de Jesus e que eles se constituem, por esse
motivo, em testemunhos indiscutíveis dos acontecimentos que ilustraram sua
existência e sua predicação. Em face de tais garantias de autenticidade, como
poderemos discutir os ensinamentos que eles se retiram, como poder-se-ia por
em dúvida a avaliação da instituição Igreja pela aplicação das diretrizes gerais
dadas pelo próprio Jesus? As edições atuais de vulgarização dos Evangelhos
contêm os comentários destinados a veicular essas noções ao público.
61
Aos fi éis apresenta-se como um axioma a qualidade de testemunhas
oculares dos redatores dos Evangelhos. Os Evangelhos não foram chamados
por São Justino, em meados do século II, de “As Memórias dos Apóstolos”?
Além disso, registra-se tanta precisão sobre os autores, que se pergunta como
se poderia duvidar de sua exatidão: Mateus era um personagem bem conhecido,
“Empregado do escritório da alfândega ou do fi sco de Cafarnaum”; sabe-se
até que ele conhecia o aramaico e o grego. Marcos é também perfeitamente
identifi cado como colaborador de Pedro, ninguém duvida que ele não seja
também uma testemunha ocular. Lucas é o “querido médico” do qual fala Paulo:
as informações sobre ele são muito precisas. João, fi lho de Zebedeu, o pescador
do lago de Genesaré, é o apóstolo sempre ao lado de Jesus.
Os estudos modernos sobre o início do cristianismo mostram que esta
maneira de apresentar as coisas não corresponde absolutamente à realidade.
Ver-se-á o que ocorreu entre os autores dos Evangelhos. Para o que concerne
aos decênios que se seguiram à missão de Jesus, é preciso saber que os
acontecimentos não foram absolutamente desenrolados como se disse e que a
chegada de Pedro a Roma não estabeleceu, de modo algum, a Igreja sobre seus
fundamentos. Muito ao contrário, entre o momento em que Jesus deixa esta
terra ate a metade do século, isto é, durante mais de um século, assiste-se a uma
luta entre duas tendências, às quais se pode chamar de cristianismo paulineano
e o judeu-cristianismo; progressivamente, o primeiro suplantou o segundo e o
paulianismo triunfou sobre o judeu-cristianismo.
Um grande número de trabalhos remontando a todos os últimos decênios,
fundados sobre as descobertas de nosso tempo, permitiram chegar a essas
noções modernas, às quais está ligado o nome do cardeal Daniélon. O artigo
que ele publicou, em dezembro de 1967, na revista Études, «Uma visão nova
das origens cristãs, o judeu-cristianismo», retomando os trabalhos anteriores,
retraça a história e nos permite situar o aparecimento dos Evangelhos num
contexto bem diferente daquele que resulta das expansões destinadas à grande
vulgarização. Encontrar-se-á, mais adiante, uma condensação dos pontos essenciais
de seu artigo com amplas citações.
Após Jesus, o «pequeno grupo dos apóstolos» forma «uma seita judaica
fi el às observâncias e ao culto do templo». Todavia, quando se junta a eles o
grupo dos convertidos, vindo do paganismo, se lhes propõe, pode-se dizer, um
regime especial: o Concílio de Jerusalém de 49 os dispensa da circuncisão e das
observâncias judaicas; «muitos dos judeus-cristãos se recusam a esta concessão
». Esse grupo é completamente separado de Paulo. Além disso, a propósito
dos pagãos vindos ao cristianismo. Paulo e os judeu-cristãos se chocam (inci62