14. POLIGAMIA
Passemos agora para a importante questão que é a poligamia. A poligamia é uma prática muito antiga, encontrada em muitas sociedades humanas. A Bíblia não condenou a poligamia. Pelo contrário, o Velho Testamento e os escritos rabínicos freqüentemente atestam a legalidade da poligamia. Dizem que o Rei Salomão teve 700 esposas e 300 concubinas (Reis 11:3). Também o Rei Davi teve muitas esposas e concubinas (2 Samuel 5:13). O Velho Testamento tem algumas injunções em como distribuir a propriedade de um homem entre seus filhos de diferentes mulheres (Deuteronômio 22:7). A única restrição com relação à poligamia é a proibição de tomar uma irmã da esposa como uma esposa rival (Levítico 18:18). O Talmud aconselha a um máximo de 4 esposas (51). Os judeus europeus continuaram a praticar a poligamia até o século XVI.
Os judeus orientais praticavam a poligamia regularmente até a chegada a Israel, onde ela foi proibida por lei. Contudo, na lei religiosa, que sobrepuja a lei civil em tais casos, a poligamia é permitida (52).
E com relação ao Novo Testamento? De acordo com o padre Eugene Hilman, em seu penetrante livro, a poligamia é reconsiderada, “Em parte alguma do Novo Testamento há uma orientação expressa de que o casamento deve ser monogâmico ou qualquer orientação que proíba a poligamia”. (53). Além disso, Jesus não falou contra a poligamia, embora ela fosse praticada pelos judeus de sua época. O padre Hillman chama a atenção para o fato de que a Igreja de Roma proibiu a poligamia, a fim de se adequar à cultura Greco-romana (que prescrevia somente uma esposa legal, enquanto que tolerava o concubinato e a prostituição). Ele citou Santo Agostinho, “Agora, em nosso tempo, e de acordo com o costume romano, não é mais permitido tomar uma outra esposa” (54). As igrejas africanas e os cristãos africanos muitas vezes lembram a seus irmãos europeus que a proibição da poligamia é mais uma tradição cultural do que uma autêntica injunção cristã.
O Alcorão também permitiu a poligamia, mas não sem algumas restrições: “Se vós temeis não serdes capazes de conviver justamente com os órfãos, casai com mulheres de sua escolha, 2 ou 3 ou 4 vezes; mas se temerdes que que não sereis capazes de conviver justamente com elas, então casai somente com uma” (4:13). O Alcorão, ao contrário da Bíblia, limitou o número de esposas a 4, sob a estrita condição de que as esposas sejam tratadas igualmente. Isto não deve ser entendido como uma exortação a que os crentes pratiquem a poligamia, ou que a poligamia seja considerada como um ideal. Em outras palavras, o Alcorão “tolera” ou “permite” a poligamia, e não mais, mas por que? Por que a poligamia é permitida? A resposta é simples: há lugares e épocas em que razões morais e sociais compelem para a poligamia. Como os versos do Alcorão acima indicam, a questão da poligamia no Islam não pode ser entendida como parte das obrigações da comunidade com relação aos órfãos e viúvas. O Islam, como uma religião universal, aplicável para todos os lugares e tempos, não poderia ignorar essas pressões.
Em muitas sociedades humanas, as mulheres superam os homens em quantidade. Em um país como a Guiné, há 122 mulheres para cada 100 homens. Na Tanzânia, há 95,1 homens para 100 mulheres (55). O que uma sociedade deve fazer para resolver esse desequilíbrio? Existem várias soluções, e alguns podem sugerir o celibato, outros preferem o infanticídio feminino (que ainda acontece no mundo de hoje em alguns lugares). Outros, ainda, podem achar que a única saída é a sociedade tolerar todas as formas de permissividade sexual: prostituição, sexo fora do casamento, homossexualismo, etc. Para outras sociedades, como a maior parte das sociedades africanas de hoje, a saída mais honrosa é permitir o casamento poligâmico, como uma instituição culturalmente aceita e socialmente respeitada. A questão, que é muitas vezes incompreendida no ocidente, é que muitas mulheres de outras culturas necessariamente não vêm a poligamia como um sinal de degradação da mulher. Por exemplo, muitas jovens noivas africanas, sejam cristãs ou muçulmanas, prefeririam se casar com um homem casado, que tenha provado a ele mesmo, ser um marido responsável.
. Muitas esposas africanas persuadem seus maridos a tomar uma segunda esposa e assim eles não se sentem sozinhos (56). Uma pesquisa realizada na segunda maior cidade da Nigéria com 600 mulheres, com idades entre 15 e 59 anos, mostrou que 60% dessas mulheres não se importariam que seus maridos tivessem uma outra esposa. Somente 23% expressaram raiva ante a idéia de dividirem seus maridos com outras mulheres. 76% das mulheres que se manifestaram numa pesquisa realizada no Quênia, viram a poligamia positivamente. Em outra pesquisa realizada no campo, 25 de 27 mulheres consideraram a poligamia melhor do que a monogamia.
Estas mulheres sentiram que a poligamia pode ser uma experiência feliz e benéfica se as co-esposas cooperarem umas com as outras (57). A poligamia, na maior parte das sociedades africanas é uma instituição tão respeitada, que algumas igrejas protestantes começaram a tolerá-la, “Embora a monogamia possa ser ideal para a expressão do amor entre o marido e a esposa, a igreja deve considerar que em certas culturas a poligamia é socialmente aceitável e que a crença de que a poligamia é contrária ao cristianismo não se sustenta por muito tempo”. (58) Depois de um cuidadoso estudo sobre a poligamia africana, o Reverendo David Gitari, da Igreja Anglicana, concluiu que a poligamia, como idealmente praticada, é mais cristã do que o divórcio e o novo casamento, porque há uma preocupação com as esposas e crianças abandonadas. (59) Eu pessoalmente conheço algumas esposas africanas, finamente educadas, que apesar de terem vivido no Ocidente por muitos anos, não fazem qualquer objeção à poligamia. Uma delas, que mora nos USA, solenemente estimula seu marido a tomar uma segunda esposa para ajudá-la na criação das crianças.
O problema do desequilíbrio entre os sexos começa na verdade nos problemáticos tempos de guerra. Os índios nativos americanos costumavam sofrer com essa desigualdade de número entre homens e mulheres, principalmente após as perdas dos tempos de guerra. As mulheres dessas tribos, que na verdade desfrutavam de uma alta posição, aceitavam a poligamia como a melhor proteção contra a tolerância por atividades indecentes. Os colonos europeus, sem oferecerem qualquer outra alternativa, condenavam a poligamia indiana como “incivilizada” (60).
Após a segunda guerra mundial, havia na Alemanha 7.300.000 mais mulheres do que homens (3.3 milhões delas eram viúvas). Havia 100 homens na idade de 20 a 30 anos para cada 167 mulheres naquele mesmo grupo de idade. (6l) Muitas dessas mulheres necessitavam de um homem, não apenas como uma companhia mas, também, como um mantenedor para a casa, num tempo de miséria e injustiça sem precedentes. Os soldados do exército aliado vitorioso exploravam a vulnerabilidade dessas mulheres. Muitas jovens e viúvas tinham ligações com membros das forças de ocupação. Muitos soldados americanos e britânicos pagavam por seus prazeres com cigarros, chocolates e pães. As crianças ficavam felizes com os presentes que os estrangeiros traziam. Um menino de 10 anos, vendo esses presentes com outras crianças, desejava ardentemente um “inglês” para a sua mãe e assim, ela não precisaria passar fome por tanto tempo (62). Devemos perguntar para nossa consciência sobre esta questão: O que dignifica mais uma mulher? Uma segunda esposa, aceita e respeitada, ou uma prostituta virtual, como no caso da abordagem “civilizada” das forças aliadas na Alemanha? Em outras palavras, o que dignifica mais uma mulher, a prescrição alcorâmica ou a teologia baseada na cultura do império romano?
É interessante notar que, em uma conferência da juventude internacional, acontecida em Munique, em 1948, o problema alemão do desequilíbrio no número de homens e mulheres foi discutido. Quando ficou claro que não havia solução consensual, alguns participantes sugeriram a poligamia. A reação inicial da reunião foi uma mistura de choque e repugnância. Contudo, após um estudo cuidadoso da proposta, os participantes concordaram que a poligamia era a única solução possível. Consequentemente, a poligamia estava incluída entre as recomendações finais da conferência. (63)
Atualmente, o mundo possui mais armas de destruição em massa do que jamais houve em qualquer tempo e as igrejas européias podem, mais cedo ou mais tarde, se ver obrigadas a aceitar a poligamia como o único caminho. O Padre Hillman, após muito pensar, admitiu este fato, “É quase concebível que aquelas técnicas genocidas (nuclear, biológica, química…) podem produzir um desequilíbrio tão drástico entre os sexos que o casamento plural poderia ser um meio necessário de sobrevivência… Em tal situação, os teólogos e os líderes das igrejas deveriam rapidamente produzir razões importantes e textos bíblicos que justifiquem um novo conceito de casamento”. (64)
Nos dias atuais, a poligamia continua a ser a solução viável para alguns males das sociedades modernas. As obrigações comunitárias a que o Alcorão se refere, juntamente com a permissão da poligamia, são mais perceptíveis atualmente nas sociedades ocidentais do que na África. Por exemplo, nos USA de hoje, há uma séria crise na comunidade negra. Um em cada 20 jovens rapazes negros podem morrer antes de atingir a idade de 2l anos. Para aqueles que estão entre os 20 e 35 anos, o homicídio lidera a causa da morte (65). Além disso, muitos rapazes negros estão desempregados, na prisão ou são viciados (66). Como conseqüência, um em 4 mulheres negras, na idade de 40 anos, nunca se casaram, enquanto que este número é de 1 para 10 mulheres brancas (67). Além do mais, muitas jovens negras se tornam mães solteiras antes dos 20 anos e se encontram na situação de serem mantidas. O resultado final dessas trágicas circunstâncias é que há um aumento no número de mulheres negras comprometidas com “homem-partilhado” (68). Isto é, muitas dessas infelizes mulheres negras solteiras estão envolvidas em casos com homens casados. As esposas muitas vezes não têm consciência do fato de que outras mulheres estão dividindo seus maridos com elas. Alguns observadores da crise do “homem-partilhado” na comunidade africana na América têm recomendado a poligamia consensual, como uma resposta temporária para a diminuição do número de homens negros, até que reformas mais abrangentes na sociedade americana sejam tomadas (69). Esses observadores entendem poligamia consensual como a poligamia sancionada pela comunidade e na qual todas as partes envolvidas concordem, em oposição ao segredo dos casos com homens casados, os quais sempre prejudicam tanto a esposa como a comunidade em geral.
O problema do “homem-partilhado” na comunidade africana da América foi ponto de discussão em um painel realizado na Universidade de Temple, na Filadélfia, em 27.01.93 (70). Alguns dos palestrantes recomendaram a poligamia como um remédio potencial para a crise. Eles também sugeriram que a poligamia não podia ser banida por lei, particularmente em uma sociedade que tolera a prostituição e o concubinato.. O comentário de uma das mulheres participantes, de que os negros americanos precisavam aprender com a África, onde a poligamia era praticada responsavelmente, conseguiu entusiásticos aplausos.
Philip Kilbride, um antropólogo americano, de tradição católica romana, em seu livro provocativo, “Casamento Plural para o Nosso Tempo”, propõe a poligamia como solução para alguns dos males da sociedade americana. Ele argumenta que o casamento plural pode servir como uma alternativa potencial para o divórcio em muitos casos,a fim de eliminar o impacto danoso do divórcio sobre as crianças. Ele afirma que muitos divórcios foram causados pelo excessivo número de casos extraconjugais ocorridos na sociedade americana. De acordo com Kilbride, transformar um caso extraconjugal em um casamento poligâmico, ao invés do divórcio, é melhor para as crianças. Além disso, ele sugere que outros grupos também se beneficiarão do casamento plural, tais como: mulheres mais velhas, que enfrentam uma crônica diminuição de homens e os negros americanos, que estão envolvidos com o “homem-partilhado”. (7l)
Em 1987, uma votação conduzida por um estudante de jornalismo da Universidade de Berkeley, perguntava aos estudantes se eles concordavam que os homens poderiam ser autorizados, por lei, a terem mais de uma esposa, tendo em vista a visível diminuição do número de candidatos masculinos para o casamento na Califórnia. Quase todos os votantes aprovaram a idéia. Uma estudante chegou a declarar que o casamento poligâmico preencheria suas necessidades físicas e emocionais, porque lhe daria maior liberdade do que uma união monogâmica (72). Na verdade, o mesmo argumento foi usado por alguns poucos remanescentes das mulheres fundamentalistas Mormom, que ainda praticam a poligamia nos USA.
Elas acreditam que a poligamia é um caminho ideal para a mulher ter, tanto profissão como crianças, uma vez que as esposas se ajudam umas às outras no cuidado com os filhos.
Deve-se acrescentar que a poligamia no Islam é questão de consenso mútuo. Ninguém pode forçar a mulher a se casar com um homem casado. Além disso, a esposa tem o direito de estipular que seu marido não deve se casar com outra mulher (74). A Bíblia, pôr outro lado, algumas vezes vale-se da poligamia forçada. Uma viúva sem filhos deve se casar com o seu cunhado, mesmo que ele já seja casado (ver a seção “A condição das Viúvas”) e independente de seu consentimento (Gênesis 38:8/10).
Deve-se notar que, em muitas sociedades muçulmanas de hoje, a prática da poligamia é rara, uma vez que a diferença entre os sexos não é grande. Pode-se dizer que o número de casamentos poligâmicos no mundo muçulmano é muito menor do que o de casos extraconjugais no ocidente. Em outras palavras, os homens no mundo muçulmano são muito mais monogâmicos do que os homens no mundo ocidental.
Billy Grahan, o eminente evangélico cristão, reconheceu este fato: “O cristianismo não pode se comprometer com a questão da poligamia. Se hoje o cristianismo não pode fazer isso, é em seu próprio detrimento. O Islam permitiu a poligamia como uma solução para os males sociais e reconheceu um certo grau de latitude da natureza humana, mas, somente dentro da estrutura estritamente definida na lei.
Os países cristãos fazem um estardalhaço sobre a monogamia, mas, na verdade, eles praticam a poligamia. Ninguém ignora a existência das amantes na sociedade ocidental. A esse respeito, o Islam é fundamentalmente uma religião honesta, que permite a um muçulmano se casar uma segunda vez se ele precisa, mas proibe rigorosamente todas as associações clandestinas, a fim de salvaguardar a probidade moral da comunidade”. (75)
Releva notar que muitos países no mundo de hoje, muçulmanos ou não, proibiram a poligamia. Tomar uma segunda esposa, ainda que com o livre consentimento da primeira, é uma violação da lei. Por outro lado, trair a esposa, com ou sem o seu conhecimento e/ou consentimento, é perfeitamente legítimada. Qual é a sabedoria legal por detrás de tal contradição? A lei foi feita para premiar a decepção e punir a honestidade? Este é um dos paradoxos fantásticos de nosso mundo “civilizado”.
15. HIJAB
Finalmente, vamos esclarecer o que é considerado no ocidente como o maior símbolo de opressão e servidão da mulher, o véu, ou a cabeça coberta. É verdade que não existe algo como o véu na tradição judaico-cristã? Façamos o registro correto. De acordo com o Rabino Dr. Menachem M. Brayer (Professor de Literatura Bíblica na Universidade de Yeshiva) em seu livro, “A Mulher Judia na Literatura Rabínica”, era um costume judeu a mulher ir aos lugares públicos com a cabeça coberta, e, em alguns casos, com todo o rosto coberto, deixando apenas um olho de fora (76). Ele cita alguns famosos ditos rabinícos antigos, “Não é bom para as filhas de Israel andarem na rua com suas cabeças descobertas” e “Amaldiçoado seja o homem que permite que o cabelo de sua esposa seja visto… uma mulher que expõe seus cabelos como adorno traz a pobreza”. A lei rabínica proibe a recitação de bênçãos e orações na presença de mulheres casadas com a cabeça descoberta, uma vez que o cabelo é considerado “nudez” (77). O Dr. Brayer também menciona que “Durante o período Tannaitic a mulher judia com sua cabeça descoberta era considerada uma afronta à sua modéstia. Quando sua cabeça estava descoberta ela podia ser multada em 400 zuzim por esta ofensa”. O Dr. Brayer também explica que o véu da mulher judia nem sempre era considerado como um sinal de modéstia. Algumas vezes, o véu simbolizava mais um estado de distinção e de luxúria do que modéstia. O véu personificava a dignidade e superioridade das mulheres nobres. Também podia representar a inacessibilidade da mulher, como posse santificada de seu marido (78),
O véu significava o auto-respeito de uma mulher e um status social. As mulheres das classes mais baixas vestiam o véu para dar a impressão de uma posição mais elevada. O fato de o véu significar sinal de nobreza foi a razão de não se permitir às prostitutas cobrirem seus cabelos, na antiga sociedade judaica. Contudo, as prostitutas muitas vezes usavam um lenço especial, a fim de parecerem respeitáveis (79). As mulheres judias na Europa continuaram a usar o véu até o século XIX, quando suas vidas se tornaram interrelacionadas com o meio cultural. As pressões externas da vida européia no século XIX, obrigaram as mulheres a saírem com as cabeças descobertas. Algumas judias achavam mais conveniente substituir o tradicional véu por peruca, como uma outra forma de cobrir a cabeça. Atualmente, muitas mulheres judias pieddosas não cobrem mais suas cabeças, exceto quando se encontram nas sinagogas (80). Algumas delas, tais como as da citada Hasidic, ainda usam peruca (81).
O que dizer a respeito da tradição cristã? É sabido que as freitas católicas usaram suas cabeças cobertas por centenas de anos, mas isto não é tudo. São Paulo, no Novo Testamento, fez algumas declarações muito interessantes a respeito do véu: “Agora eu quero que vocês percebam que a cabeça de cada homem é o Cristo e a cabeça da mulher é o homem e a cabeça do Cristo é Deus. Cada homem que reza ou vaticina com a cabeça coberta desonra a sua cabeça. Cada mulher que ora ou vaticina com a cabeça descoberta desonra sua cabeça – é como se sua cabeça estivesse raspada. Se a mulher não cobrir sua cabeça, ela deve ter os seus cabelos cortados: e para não cair na desgraça de ter os cabelos cortados ou raspados ela deve cobri-los. Um homem não deve cobrir sua cabeça uma vez que ele é a imagem e glória de Deus; mas a mullher é oriunda do homem; o homem não foi criado da mulher, mas a mulher foi criada do homem. Por esta razão, e por causa dos anjos, a mulher deve ter um símbolo da autoridade sobre sua cabeça” (I Coríntios 11:3/10.
As razões apresentadas por São Paulo, para que a mulher se cubra, é que o véu significa um sinal de autoridade do homem, o qual é a imagem e glória de Deus sobre a mulher, que foi criada dele e para ele. São Tertuliano, em seu famoso tratado “Sobre o véu das virgens”, escreveu “jovens mulheres, vocês se cobrem quando nas ruas, assim, vocês devem se cobrir quando na igreja, vocês se cobrem quando estão entre pessoas estranhas, portanto vocês devem se cobrir quando estiverem entre seus irmãos…” Entre as leis canônicas da Igreja Católica de hoje, há uma lei que exige que as mulheres cubram suas cabeças quando estiverem na igreja (82). Algumas denominações cristãs, tais como os Amish e os Menonitas, por exemplo, matêm suas mulheres cobertas até hoje. A razão para o véu, conforme explicado pelos líderes da Igreja, é que “a cabeça coberta é um símbolo da sujeição feminina ao homem e a Deus”, o que, no final, significa a mesma lógica apresentada por São Paulo no Novo Testamento (83).
De todas as evidências acima, é óbvio que o Islam não inventou a cabeça coberta. Contudo, o Islam endossa a tese. O Alcorão obriga homens e mulheres a baixarem seus olhos e guardarem suas modéstias e, com relação às mulheres, determina que suas cabeças sejam cobertas, além do pescoço e seios:
“Diga às crentes que elas devem baixar seus olhos e guardar sua modéstia; que elas não devem exibir sua beleza e adornos, exceto o que comumente aparece; que elas devem puxar seus véus sobre os seios… ” (24:30/3l)
O Alcorão é bem claro no que se refere ao véu como essencial para a modéstia. Mas, por que a modéstia é importante? O Alcorão é ainda mais claro: “Ó Profeta, dize às tuas esposas e filhas, e às crentes, que elas devem se cobrir com suas mantas (quando na rua) a fim de que elas se distingam das demais e não sejam molestadas” (33:59). Esta é a questão principal, a modéstia é prescrita para proteger as mulheres de serem molestadas, isto é, a modéstia é proteção.
Assim, a única proposta do véu no Islam é a proteção. O véu islâmico, diferentemente do véu na tradição cristã, não é sinal da autoridade do homem sobre a mulher, nem é um sinal de sua sujeição ao homem. O véu islâmico, diferentemente da tradição judaica, não é um sinal de luxúria ou de distinção de algumas mulheres casadas nobres. O véu islâmico é simplesmente um sinal de modéstia, com a proposta de proteger as mulheres, todas as mulheres. A filosofia islâmica é que é sempre melhor prevenir do que remediar. Realmente, o Alcorão é tão preocupado com a proteção dos corpos das mulheres e sua reputação, que um homem que se atrever a acusar falsamente uma mulher de não ser casta, será severamente punido:
“E aqueles que difamarem as mulheres castas, sem apresentarem 4 testemunhas, infligí-lhes oitenta chibatadas e nunca mais aceiteis os seus testemunhos por que tais homens são transgressores”.
Compare-se esta posição alcorânica com a punição extremamente branda da Bíblia para os casos de estupro: Se um homem encontra uma virgem, que está na condição de casar e a estupra e eles são descobertos, ele deve pagar ao pais da moça 50 shekels de prata. Ele deve se casar com a moça por que ele a violou. Ele não poderá nunca se divorciar dela enquanto viver (Deuteronômio 22:38/30). Podemos simplesmente perguntar: Quem é punido realmente? O homem que somente pagou uma multa pelo estupro ou a moça que se viu forçada a se casar com o homem que a violentou e a ficar com ele até que ele morra? Outra questão que se apresenta é: quem proteje mais as mulheres, o Alcorão com sua postura rigorosa, ou a Bíblia com sua posição mais branda?
Algumas pessoas, sobretudo no ocidente, têm uma tendência a ridicularizar a argumentação da modéstia para proteção. Elas dizem que a melhor proteção é divulgar a educação, o comportamento civilizado e o auto-controle. E nós dizemos: ótimo, mas insuficiente. Se o processo de civilização fosse suficiente, então por que mulheres nos USA não se atrevem a andar sozinhas em ruas escuras, ou mesmo a cruzar um parque vazio? Se a Educação fosse a solução, então por que é que uma respeitada universidade como a de Queen tem um serviço de condução principalmente para as estudantes no campus? Se o auto-controle fosse a resposta, então por que tantos casos de molestamento sexual acontecem em locais de trabalho, como relatados nos jornais a cada dia? Em uma amostra sobre os molestadores, nos últimos anos, encontramos: marinheiros, diretores, professores universitários, senadores, juízes da Suprema Corte e até o Presidente dos Estdos Unidos. Eu não posso acreditar em meus olhos, quando leio sobre as seguintes estatísticas, elaboradas pelo escritório das mulheres decanas da Universidade de Queens:
* No Canadá, uma mulher é atacada sexualmente a cada seis minutos;
* Uma, em cada três mulheres no Canada, será sexualmente assaltada em alguma época de suas vidas;
* 1 em 4 mulheres corre o risco de ser estuprada alguma vez;
* 1 em 8 mulheres será atacada sexualmente enquanto estiver no colégio ou universidade; e
* Um estudo concluiu que 60% dos estudantes universitários canadenses cometeriam algum tipo de violência sexual se eles estivessem seguros de não serem descobertos.
Alguma coisa está fundamentalmente errada na sociedade em que vivemos. Uma mudança radical no modo de vida e na cultura da sociedade se faz absolutamente necessária. Uma cultura de modéstia é necessária, modéstia no vestir, no falar e nos modos, tanto de homens como de mulheres. Caso contrário, as terríveis estatísticas continuarão a crescer e, infelizmente, as mulheres, sozinhas, pagarão o preço. Realmente, nós todos sofremos, mas K. Gibran disse “… porque a pessoa que recebe os golpes não é como a que se encontra entre elas” (84). Logo, uma sociedade como a francesa, que expulsa uma jovem de sua escola por causa de suas roupas, acaba, no final, por, simplesmente, se ferir a si mesma.
Uma das maiores ironias de nosso mundo atual é que, o mesmo véu que é reverenciado como sinal de “santidade”, quando usado pelas freiras católicas como forma de exibir a autoridade do homem, é mostrado como forma de “opressão” quando vestido com o objetivo de protejer a mulher muçulmana.
EPÍLOGO
A questão que se apresenta àqueles não mulçumanos, que leram uma versão inicial do presente estudo é: As mulheres muçulmanas no mundo de hoje recebem este nobre tratamento tal como descrito aqui? A resposta, infelizmente, é: Não. Uma vez que a questão é inevitável em qualquer discussão referente à condição das mulheres no Islam, temos que elaborar uma resposta, a fim de fornecer aos leitores um quadro completo.
Devemos esclarecer, primeiro, que as enormes diferenças entre as sociedades muçulmanas acabam por fazer generalizações muito simplistas. Há um vasto espectro de posturas em relação à mulher no mundo muçulmano atual. Estas posturas diferem de uma sociedade para outra e dentro de sociedade individual. Contudo, podemos discernir certos traços gerais. Quase todas as sociedades muçulmanas, em maior ou menor grau, desviaram-se dos ideais do Islam, com respeito à condição das mulheres. Estes desvios, na maior parte, se direcionaram para uma ou duas direções. A primeira é mais conservadora, restritiva e orientada pelas tradições, enquanto que a segunda é mais liberal, orientada pelos costumes ocidentais.
As sociedades que se encaminharam para a primeira direção tratam as mulheres de acordo com os costumes e tradições herdados de seus ascendentes. Estas tradições, comumente, privam as mulheres de muitos direitos garantidos a elas pelo Islam. Além disso, as mulheres são tratadas de acordo com padrões diferentes daqueles aplicados aos homens. Esta discriminação penetra a vida de qualquer mulher: ela é recebida com menos alegria ao nascer do que um menino; ela é menos incentivada a ir para a escola; ela pode ser privada de qualquer participação na herança de sua família; ela está sob contínua vigilância com relação a sua modéstia, enquanto que os atos de imodéstia de seus irmãos são tolerados; ela pode até ser morta por cometer o que os membros masculinos de sua família comumente se vangloriam de praticar; ela tem pouca atuação nos assuntos familiares ou nos interesses comunitários; ela pode não ter o completo controle sobre suas posses e seus presentes de casamento; e, finalmente, como mãe, ela preferiria gerar filhos homens a fim de alcançar uma elevada posição em sua comunidade.
Por outro lado, há sociedades muçulmanas (ou certas classes dentro de algumas sociedades) que foram varridas pela cultura e modo de vida do ocidente. Estas sociedades, muitas vezes, imitam, de forma inimaginável, tudo o que receberam do ocidente e, finalmente, acabam por adotar os piores frutos da civilização ocidental. Nestas sociedades, a prioridade máxima na vida de uma típica mulher “moderna” é realçar sua beleza física. Em razão disso, seu esforço é mais para compreender sua feminilidade do que preencher sua humanidade.
Por que as sociedades muçulmanas se desviaram dos ideais do Islam? Não há uma resposta fácil. Uma explicação penetrante, das razões pelas quais muçulmanos não aderiram aos preceitos alcorânicos com relação às mulheres, está além do objetivo deste estudo. Contudo, deve ser esclarecido que as sociedades muçulmanas também se desviaram, há muito tempo, dos preceitos islâmicos concernentes a muitos aspectos de suas vidas. Há uma grande diferença entre o que os muçulmanos supõem acreditar e o que eles realmente praticam. Esta diferença não é um fenômeno recente. Tem sido assim por séculos e continuará aumentando dia após dia. Esta diferença sempre crescente tem tido consequências desastrosas sobre o mundo muçulmano e se manifestam em quase todos os aspectos da vida: tirania e fragmentação política, economia, injustiça social, falência científica, estagnação intelectual, etc. O status não islâmico das mulheres no mundo muçulmano atual é simplesmente um sintoma de doença mais profunda. Qualquer reforma no atual status das mulheres muçulmanas não terá sucesso se não for acompanhada de reformas mais amplas em todo o modo de vida das sociedades islâmicas. O mundo muçulmano está necessitando de um renascimento que o aproxime dos ideais do Islam e não que o afaste deles. Para resumir, a noção, hoje em dia, de que há um pobre status das mulheres muçulmanas se deve a uma total incompreensão. Os problemas dos muçulmanos em geral não são devidos ao fato de eles estarem muito presos ao Islam. Na verdade, eles se originam exatamente por um longo e profundo afastamento do Islam.
Deve-se também enfatizar que a proposta deste estudo comparativo não é, em qualquer hipótese, difamar o judaismo ou o cristianismo. A posição das mulheres nas tradições judaico-cristãs pode parecer retrógrada, se comparada com nossos padrões de final de século XX, contudo, deve ser encaradasdentro de seu próprio contexto histórico. Em outras palavras, qualquer avaliação da posição das mulheres na tradição judaico-cristã tem que levar em conta as circunstâncias históricas nas quais essas tradições se desenvolveram. Não pode haver dúvida de que as opiniões dos rabinos e pastores da Igreja, em relação às mulheres, foram influenciadas por posturas prevalecentes em suas respectivas sociedades. A própria Bíblia foi escrita por diversos autores em diversas épocas. Estes autores não podiam ser imparciais aos valores e modo de vida das pessoas à volta deles. As leis do adultério no Velho Testamento, por exemplo, eram tão desfavoráveis às mulheres que elas desafiam qualquer explicação racional por parte de nossa mentalidade. Contudo, se nós considerarmos o fato de que as primeiras tribos judias eram obcecadas pela sua homogeneidade genética e extremamente desejosas de se distinguirem das outras tribos, e que somente a má conduta sexual das mulheres casadas podia ameaçar essas caras aspirações, nós podemos entender, mas não necessariamente nos simpatizarmos com elas, as razões de tal obcessão. Também, as ranzinzices dos padres da Igreja contra as mulheres devem ser encaradas dentro do contexto da misoginia da cultura greco-romana, na qual eles viviam. Não seria correto avaliar o legado judaico-cristão, sem levar em consideração o relevante contexto histórico.
De fato, a compreensão adequada do contexto histórico também é crucial para o entendimento do significado das contribuições do Islam para a história mundial e a civilização humana. A tradição judaico-cristão foi influenciada e moldada pelo meio ambiente, condições e culturas existentes à época. No século VII, esta influência distorceu a mensagem divina revelada a Moisés e Jesus, muito além do reconhecimento. O pobre status das mulheres no mundo judaico-cristão no séc. VII é apenas um caso em questão. Em razão disso, havia uma grande necessidade de uma nova mensagem, que levasse a humanidade de volta para o camino reto. O Alcorão descreveu a missão do novo mensageiro como uma libertação para judeus e cristãos do peso que havia sobre eles:
“São aqueles que seguem o Mensageiro, o Profeta iletrado, o qual encontram mencionado em suas próprias escrituras – Tora e Evangelho – o qual lhes recomenda todo o bem e lhes veda o que é mal; ele lhes alivia de seus pesados fardos e dos grilhões que estão sobre eles” (7:157)
Portanto, o Islam não deve ser visto como uma tradição rival para o judaismo e cristianismo. Ele deve ser encarado como uma consumação, complementação e aperfeiçoamento das mensagens divinas que foram reveladas anteriormente.
Ao final desse estudo, gostaria de oferecer o seguinte conselho para a comunidade muçulmana global. Nega-se a muitas mulheres muçulmanas os direitos islâmicos básicos. Os erros do passado devem ser corrigidos. Fazer isto não é um favor, mas sim uma obrigação para todos os muçulmanos. A comunidade muçulmana mundial deve elaborar um quadro com as instruções do Alcorão e os ensinamentos do Profeta do Islam. Este quadro deve garantir a elas todos os direitos doados pelo Criador. Então, todos os meios necessários têm de ser desenvolvidos, a fim de assegurar a implementação adequada deste quadro, o qual se faz necessário há muito tempo. Mas, melhor tarde do que nunca. Se o mundo muçulmano não garantir os direitos islâmicos plenos a suas mães, esposas, irmãs, filhas, quem o fará?
Temos que ter a coragem de confrontar nosso passado e rejeitar completamente as tradições e costumes de nossos ascendentes, sempre que essas tradições e costumes se contraponham aos preceitos do Islam. O Alcorão não criticou severamente os árabes pagãos por seguirem cegamente as tradições de seus ancestrais? Por outro lado, temos que desenvolver uma atitude crítica em relação a tudo que recebemos do ocidente ou de qualquer outra cultura. A interação com e o aprendizado de, são experiências válidas. O Alcorão sucintamente considerou esta interação como uma das propostas da criação:
“Oh! homens, em verdade Nós vos criamos de um único casal e vos dividimos em povos e tribos, para reconhecerdes uns aos outros“ (49.13).
Pode-se dizer, contudo, que a imitação cega dos outros é um sinal certo de uma completa falta de auto-estima. Estas palavras finais são dedicadas aos leitores não muçulmanos, judeus, cristãos, ou quaisquer outros. É desorientador o fato de uma religião, que revolucionou a condição da mulher, estar sendo tachada e denegrida como sendo uma religião que reprime a mulher. Esta percepção sobre o Islam é um dos mitos mais difundidos em nosso mundo de hoje. Este mito está sendo perpetuado por uma enxurrada de livros sensacionalistas, artigos e imagens na mídia, e filmes de Hollywood. O resultado inevitável dessas incessantes imagens errôneas tem sido a incompreensão e o medo a tudo que se refere ao Islam. Este retrato negativo do Islam na mídia mundial tem que acabar se quisermos viver em um mundo livre de todos os traços de discriminação, preconceito e equívoco. Os não muçulmanos devem perceber a existência de uma imensa diferença entre a crença e a prática muçulmanas e o simples fato de que as ações dos muçulmanos não representam necessariamente o Islam. Rotular a condição da mulher no mundo muçulmano de hoje como “islâmica” está tão longe da verdade quanto rotular a posição da mulher de hoje, no ocidente, como “judaico-cristã”. Com isto em mente, muçulmanos e não muçulmanos devem começar o processo de comunicação e diálogo, a fim de remover todos os preconceitos, suspeitas e medos. Um futuro pacífico para a família humana necessita de tal diálogo.
O Islam deve ser visto como uma religião que mellhorou consideravelmente a condição da mulher e lhe garantiu muitos direitos que o mundo moderno só veio a reconhecer neste século. O Islam ainda tem muito a oferecer à mulher de hoje, dignidade, respeito e proteção em todos os aspectos e estágios de sua vida, desde o nascimento até a morte, além do reconhecimento, equilíbrio e meios para a satisfação de todas as suas necessidades espirituais, intelectuais, físicas e emocionais. Não espanta que muitos daqueles que escolhem ser muçulmanos em países como a Inglaterra sejam mulheres. Nos USA, as mulheres se convertem ao Islam, numa proporção de 4 para cada homem. O Islam tem muito a oferecer ao mundo de hoje, que está em grande necessidade de um guia e uma liderança moral. O embaixador Herman Eilts, testemunhando frente ao comitê de Negócios Estrangeiros do Congresso americano, em junho de 1985, disse que “a comunidade muçulmana de hoje está perto de um bilhão. Este é um número expressivo. Mas, para mim, é igualmente expressivo que o Islam hoje seja a religião monoteista que mais cresce no mundo. Devemos ter isto em conta. Alguma coisa está certa acerca do Islam. Ele está atraindo uma boa quantidade de pessoas”. Sim, alguma coisa está certa acerca do Islam, e está na hora de encontrá-la. Espero que este estudo seja um passo nesta direção.
Dr.Sherif AbdelAzeem Mohammed
fonte
sbmrj.org.br