dente de Antioquia do ano 49), «para Paulo, a circuncisão, o sábado, o culto do
templo estavam dali por diante superados mesmo para os judeus. O cristianismo
devia se libertar de sua ligação político-religiosa ao judaísmo para se abrir
aos Gentios».
Para os judeu-cristãos que permanecem como «leais israelitas», Paulo é
um traidor: os documentos judeu-cristãos o qualifi cam de «inimigo», acusando-
-o de «duplicidade de tática», mas «o judeu-cristianismo representa, até 70, a
maioria da Igreja»›. e ‹»Paulo fi ca isolado». O chefe da comunidade é, então,
Jacó, parente de Jesus. Com ele, estão Pedro (no início) e João. «Jacó pode ser
considerado como a coluna do judeu-cristianismo que fìca deliberadamente
engajado ao judaísmo em face do cristianismo paulineano». A família de Jesus
tem um grande lugar nesta igreja judeu-cristã de Jerusalém. «O sucessor de Jacó
será Simeão, fi lho de Cleofas, primo do Senhor».
O cardeal Daniélon cita aí os escritos judeus-cristãos, que refl etem como
era visto Jesus nessa comunidade formada inicialmente em torno dos apóstolos:
o Evangelho dos Hebreus (dependente de uma comunidade judeu-cristã do
Egito), os Hypotyposes de Clemente, os Reconhecidos Clementinos, o segundo
Apocalipse de Jacó, o Evangelho de Thomas19. “É a esses judeu-cristãos que é
preciso, sem dúvida, conectar os mais antigos monumentos da literatura cristã”,
da qual o cardeal Daniélon faz uma menção minuciosa.
“Não é somente em Jerusalém e na Palestina que o judeu-cristianismo
é dominante durante o primeiro século da Igreja. Em toda a parte, a missão
judeu-cristã parece ter sido desenvolvida anteriormente à missão paulineana.
É exatamente isso que explica porque as epístolas de Paulo fazem, sem cessar,
alusão a um confl ito”. São os mesmos adversários que ele reencontra em toda
a parte em Gálata, em Corinto, em Colosso, em Roma e em Antioquia.
O lado sírio-palestino, de Gaza a Antioquia, é judeu-cristão, “como o
testemunham o Ato dos Apóstolos e os escritos clementinos”. Na Ásia Menor,
a existência de judeu-cristãos é atestada pelas epístolas de Paulo aos Gálatas e
aos Colossenses. Os escritos de Papias informam sobre o judeu-cristianismo, na
Frígia. Na Grécia, a primeira epístola de Paulo aos Coríntios refere-se a judeu-
-cristãos; a Apollo, em particular. Roma é um “centro importante”, segundo a
epístola de Clemente e o Pastor de Hermas. Para Suétone e Tácito, os cristãos
formam uma seita judia. O Cardeal Daniélon pensa que a primeira evangelização
19 - Relembramos que todos esses escritos vão ser mais tarde julgados apócrifos, quer dizer, como
devendo ser escondidos, pela Igreja triunfante que vai nascer do sucesso de Paulo. Fazendo cortes
obscuros na literatura evangélica, ela vai reter senão os quatro evangelhos canônicos.
63
da África foi judia-cristã. O Evangelho dos Hebreus e dos escritos de Clemente
de Alexandria referem-se a isso.
É importante conhecer esses fatos para compreender em que ambiente
de luta entre comunidades foram escritos os Evangelhos. O aparecimento dos
textos que nós temos hoje, após muitas modifi cações das origens, vai começar
em torno do ano 70, época em que as duas comunidades rivais estão em plena
luta e os judeu-cristãos dominam ainda. Mas, com a guerra judaica e a queda
de Jerusalém em 70, a situação vai se inverter. O cardeal Daniélon explica a
decadência:
“Os judeus estavam desacreditados no Império, os cristãos helenísticos
tomam, então, a dianteira: Paulo relatará uma vitória postula; o cristianismo se
desligará social e politicamente do judaísmo; ele será o terceiro povo, todavia,
até a última revolta judaica, em 140, o judeu-cristianismo continuará dominando
culturalmente”.
De 70 a um período que se situa antes de 110, vão ser produzidos os
Evangelhos de Marcos, Mateus, Lucas e João. Eles não constituem os primeiros
documento cristãos fi xos; as epístolas de Paulo lhes são bem anteriores. Segundo
O. Culman, Paulo teria redigido em 50 sua epístola aos Tessalonicenses. Mas
ele já tinha falecido, sem dúvida, há alguns anos quando o Evangelho de São
Marcos foi concluído.
A Figura mais discutida do cristianismo e considerado como traidor do
pensamento de Jesus pela família dele e pelos apóstolos fi xados em Jerusalém
em torno de Jacó, Paulo fez o cristianismo às custas dos que Jesus havia reunido
em torno de si para propagar seus ensinamentos. Não tendo conhecido Jesus
vivo, ele justifi ca a legitimidade de sua missão, afi rmando que Jesus ressuscitado
lhe havia aparecido no caminho de Damasco. Pode-se perguntar o que teria
sido o cristianismo sem Paulo e se poderia, a esse respeito, arquitetar múltiplas
hipóteses. Mas no que concerne aos Evangelhos, há que se meditar que, se a atmosfera
de luta entre comunidades criadas pela dissidência paulineana nós não
tivesse existido, nós não teríamos os escritos que temos hoje. Aparecidos num
período de luta interna entre as duas comunidades, esses “escritos de combate”
como os qualifi ca R.P. Kannengiesser, emergiram da multidão dos escritos aparecidos
sobre Jesus, quando o cristianismo do estilo paulineano, defi nitivamente
triunfante, constitui sua compilação de textos ofi ciais, o «Cânon» que exclui e
condena como contrários à ortodoxia todos os outros documentos que não
convinham à linha escolhida pela Igreja.
64
Embora os judeu-cristãos tenham desaparecido como comunidade infl
uente, ouve-se ainda falar deles sob o vocábulo geral de “Judaizantes”. O
cardeal Daniélon evoca assim seu fi m:
“Cortados da Grande Igreja que se libera progressivamente de suas ligações
judaicas, eles se delineiam muito depressa no Ocidente. Mas constatam-se
seus traços do século III e IV no Oriente, em particular na Palestina, na Arábia,
na Transjordânia, na Síria, na Mesopotâmia. Alguns serão absorvidos pelo Islã,
que é, em parte, seu herdeiro; outros se reúnem à ortodoxia da grande Igreja,
mas conservando um fundo de cultura semítica e alguma coisa deles persiste
nas Igrejas da Etiópia e da Caldéia”.
OS QUATRO EVANGELHOS
Suas Origens, Sua Historia
Nos escritos dos primeiros tempos do cristianismo, a menção aos Evangelhos
não se faz anão ser muito posteriormente às obras de Paulo. É somente
no meio do século II, exatamente após 140, que aparecem as testemunhas
relativas a uma coleção de escritos evangélicos, ao passo que, “desde o início
do século II, muitos autores cristãos davam a entender claramente que conheciam
um grande número de epístolas paulinienses”. Essas constatações, expostas
na, Introdução a Tradução Ecumênica da Bíblia, Novo Testamento, editada em
197220, merecem ser relembradas de improviso, ao mesmo tempo em que é útil
sublinhar que a obra à qual a referência é feita, e o resultado de um trabalho
coletivo, que agrupa mais de cem especialistas católicos e protestantes.
Os evangelhos que mais tarde vão tornar-se ofi ciais, quer dizer canônicos,
foram conhecidos muito tardiamente, embora sua redação estivesse terminada
no início do século II. Segundo a Tradução Ecumênica, começam-se a
citar as narrações que lhes pertencem lá pela metade do século II, mas “é quase
sempre difícil decidir se as citações são feitas, segundo os textos escritos que os
autores tinham sob os olhos, ou se eles se contentaram em evocar de memória
os fragmentos da tradição oral”.
“Antes de 140, lê-se nos comentários dessa tradução da Bíblia, não existe
20 - Edições do Cerf et Les Berges et les Mages.
65
em todo caso nenhum testemunho, segundo o qual ter-se-ia conhecido uma
coleção de escritos evangélicos”: Esta afi rmação vai perfeitamente ao encontro
do que escreveu Tricot (1960) em seus comentários da sua tradução do
Novo Testamento: “Bem cedo, desde o início do segundo século, escreve ele,
estabelecer-se-ia o uso de dizer “o Evangelho” para designar os livros que, lá por
150, São Justino chamava também “As Memórias dos Apóstolos”. As afi rmações
deste tipo são, infelizmente, bastante frequentes para que o grande público
tenha falsas noções sobre a data da coleção dos Evangelhos.
Os Evangelhos formam um todo, mais de um século depois do fi m da
missão de Jesus, e não logo depois dela. A Tradução Ecumênica da Bíblia calcula
ao redor de 170 a data em que os quatro Evangelhos adquiriram estatuto de
literatura canônica.
A afi rmação de Justino, qualifi cando seus autores de apóstolos, não é
mais admissível hoje em dia, como se verá.
Quanto à data da redação dos Evangelhos, A. Tricot afi rma que o de
Mateus, o de Marcos e o de Lucas foram redigidos antes de 70: isto não é
aceitável, salvo, pode ser, para Marcos. Esse Comentador se esforça, após muitos
outros, em apresentar os autores dos Evangelhos como apóstolos ou companheiros
de Jesus e recua, a partir daí, as datas da redação, que os situam muito
perto da época em que Jesus viveu. Quanto a João, que A. Tricot faz viver até
por volta do ano 100, os cristãos estão habituados, há muito tempo, a vê-lo
representado muito perto de Jesus em circunstâncias solenes, mas é bem difícil
afi rmar que ele é o autor do Evangelho que leva o seu nome. O apóstolo João
(como Mateus) para A. Tricot e outros comentadores, é a testemunha autorizada
e qualifi cada dos fatos que narra, enquanto que a maioria dos críticos não
mantém a hipótese segundo a qual ele teria redigido o quarto evangelho.
Mas, então, se os quatro evangelhos em questão não podem razoavelmente
ser considerados como as “memórias” dos apóstolos ou de companheiros
de Jesus, qual é a sua origem?
O. Culmann, no seu livro O Novo Testamento21, escreve, a esse respeito
que os evangelistas eram apenas “porta-vozes da comunidade cristã primitiva
que fi xou a tradição oral. Durante trinta ou quarenta anos, o Evangelho existiu
quase que exclusivamente sob a forma oral: ora, a tradição oral transmitiu, sobretudo,
palavras e narrações isoladas. Os evangelistas urdiram as ligações , cada
um à sua maneira, cada um com personalidade própria e suas preocupações
21 - Presses Universitaires de France, 1967
66
teológicas particulares, entre as narrações e as palavras que eles receberam da
tradição ambiente. O agrupamento das palavras de Jesus, como cadeia de narrações
por fórmulas de ligação muito vagas tais como “depois disso”, “logo” etc.;
em suma, o ‘’quadro” de sinóticos22 são, portanto, de ordem puramente literária
e não de fundamento histórico”.
O mesmo autor continua: «É preciso notar, enfi m, que são as necessidades
da predicação do ensinamento do culto, mais que um interesse biográfi co
que orientaram a comunidade primitiva na fi xação dessa tradição sobre a vida
de Jesus. Os apóstolos ilustravam as verdades da fé que eles pregavam, contando
os acontecimentos da vida de Jesus, e seus sermões é que davam lugar à fi xação
das narrações. As palavras de Jesus foram transmitidas particularmente num
ensinamento catequético da Igreja primitiva».
Os comentadores da Tradução Ecumênica da Bíblia não evocam de outro
modo a composição dos Evangelhos: formação de uma tradição oral sob a infl uência
da pregação dos discípulos de Jesus e de outros pregadores; conservação
desses materiais que se encontrará afi nal, nos Evangelhos para a pregação, para
a liturgia, para o ensinamento dos fi éis; possibilidade de uma consubstanciação23
precoce sob a forma escrita de certas confi ssões de fé, de certas palavras de
Jesus, de narrações da Paixão, por exemplo; recursos dos evangelistas a essas
formas escritas diversas, assim como aos dados da tradição oral para produzir
os textos “adaptando-se aos diversos meios, respondendo às necessidades
das Igrejas, exprimindo uma refl exão sobre a Escritura, retifi cando os erros e
replicando ao mesmo tempo aos argumentos dos adversários. Os evangelistas
teriam assim recolhido e escrito, segundo sua perspectiva pessoal, o que lhes
era dado pelas tradições orais”.
Uma tal tomada de posição coletiva, que emana de mais de cem interpretadores
do Novo Testamento, católicos e protestantes, difere notadamente de
linha defi nida pelo Concílio do Vaticano II, na constituição dogmática sobre a
revelação elaborada entre 1962 e 1965. Encontrar-se-á mais adiante uma primeira
referência a esse documento conciliar, relativo ao Antigo Testamento. O Concílio
pôde declarar, a esse respeito, que os livros que o compuseram “continham
o imperfeito” e o “caduco”, mas ele não formulou semelhantes reservas a propósito
dos Evangelhos. Muito ao contrário, pode-se ler o que segue:
“Não escapa a ninguém que entre todas as Escrituras, mesmo aquelas
22 - Os três Evangelhos: de Marcos, Mateus e Lucas.
23 - Presença de Cristo na eucaris a, como a entendem os luteranos; União de dois ou mais corpos
em uma só substância
67
do Novo Testamento, os Evangelhos, possuem uma superioridade merecida no
sentido de que eles constituem o testemunho por excelência sobre a vida e os
ensinamentos do Verbo encarnado, nosso Salvador. Sempre, e em tudo, a Igreja
manteve e mantém a origem apostólica dos quatro Evangelhos. Com efeito, o
que os Apóstolos pregaram, sob a ordem de Cristo, em seguida, eles mesmos e
os homens de sua grei24, sob a inspiração divina do Espírito, nos transmitiram
em escritos que são o fundamento da fé, a saber o Evangelho quadriforme,
segundo Mateus, Marcos, Lucas e João”.
“Nossa Santa Madre Igreja sustentou e sustenta fi rmemente, e com a
maior constância, que os quatro Evangelhos, dos quais ela afi rma sem hesitar
a historicidade, transmitem fi elmente o que Jesus, o fi lho de Deus, durante sua
vida entre os homens, realmente, fez e ensinou para sua salvação eterna, até o
dia em que foi levado ao céu... Os autores sacros compõem logo os quatro
Evangelhos de maneira a nos confi ar sempre sobre Jesus as coisas verdadeiras e
sinceras”.
É a afi rmação, sem nenhuma ambiguidade, da fi delidade da transmissão
dos atos e palavras de Jesus pelos Evangelhos.
Não se nota muita compatibilidade entre esta afi rmação do Concílio e
aqueles dos autores precedentes citados, notadamente:
“Não é preciso tomar ao pé da letra” os Evangelhos, “escritos de circunstâncias”
ou ‘’de combate” nos quais os autores “consignam por escrito as
tradições de as comunidades sobre Jesus”. (R.P. Kannengiesser).
Os Evangelhos são textos “adaptados aos diversos meios, respondendo
às necessidades da Igreja, exprimindo uma refl exão sobre a Escritura, corrigindo
os erros, enfrentando ao mesmo tempo os argumentos dos adversários. Os
evangelistas reconhecem também e puseram por escrito, segundo sua perspectiva
pessoal, o que lhes era dado penas tradições orais” (Tradução Ecumênica da
Bíblia).
É evidentíssimo que, entre conciliar a declaração e as tomadas de posição
mais recentes, nos ensinamentos em presença de afi rmações que se contradizem.
Não é possível conciliar a declaração do Vaticano II, segundo a qual se deverá
encontrar nos Evangelhos uma transmissão fi el dos atos e palavras de Jesus,
com a existência desses textos de contradições, incertezas, impossibilidades naturais
e afi rmações contrárias à realidade das coisas devidamente estabelecidas.
24 - Conjunto dos paroquianos ou diocesanos; Par do; Sociedade.
68
Ao contrário, se olharmos os Evangelhos como a expressão de perspectivas
próprias dos coletores das tradições orais pertencentes a comunidades
diversas, como escritos de circunstâncias ou de combate, não podemos nos
espantar por encontrar nos Evangelhos todos esses defeitos, que são a marca
de sua confecção pelos homens em tais circunstâncias. Eles podem ser absolutamente
sinceros, embora relatem fatos dos quais eles não põem em dúvida a
exatidão, fornecendo-nos narrações em contradição com as dos outros autores
ou, então por razões de rivalidades de ordem religiosa entre comunidades, apresentam
as narrações de vida de Jesus, segundo uma óptica bem diferente da dos
adversários.
Já vimos que o contexto histórico está de acordo com esta última maneira
de conceber os Evangelhos. Os dados que possuímos sobre os próprios
textos a confi rmam totalmente.
EVANGELHO SEGUNDO MATEUS
Dos quatro Evangelhos, o de Mateus ocupa o primeiro lugar na ordem
de apresentação dos livros do Novo Testamento. Isto é perfeitamente justifi -
cado, porque este Evangelho não é, de certo modo, senão o prolongamento
do Antigo Testamento: está escrito para demonstrar que “Jesus completou a
história de Israel”; como escreveram os comentadores da Tradução Ecumênica
da Bíblia, à qual faremos grandes citações. Por isso, Mateus faz apelo constantemente
a citações do Antigo Testamento, mostrando que Jesus se comporta
como o Messias esperado pelos judeus.
Este Evangelho começa por uma genealogia de Jesus25. Mateus a faz remontar
a Abraão por David. Ver-se-á mais adiante o erro do texto, geralmente
esquecido ao silêncio pelos comentadores. Não importa o que ele seja, a intenção
de Mateus era evidente: dar em conjunto, por esta fi liação, o sentido geral
de seu livro. O autor segue a mesma ideia pondo constantemente em evidência
a atitude de Jesus perante a lei judaica, da qual os grandes princípios - oração,
jejum e esmola - são aqui retomados.
Jesus pretende endereçar seu ensinamento, acima de tudo e por prioridade,
a seu povo. Ele fala assim aos doze apóstolos: “Não tomeis o caminho dos
25 - A contradição da genealogia do Evangelho de Lucas será tratada em um capítulo especial
69
pagãos e não entreis numa cidade de Samaritanos26; de preferência, procurai as
ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mateus 10:5-6). “Eu não fui enviado senão
às ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mateus 15:24). No fi nal de seu Evangelho,
Mateus estende, secundariamente a todas as nações, o apostolado dos primeiros
discípulos de Jesus, dando-lhes esta ordem: “Ide, portanto, por todas as nações
e fazer discípulos” (Mateus 28:19), mas a partida deve-se fazer, por prioridade,
para a “casa de Israel”. A. Tricot diz desse Evangelho: “Sob a vestimenta grega, o
livro é judeu pela carne, pelos ossos e pelo espírito, trazendo dele alento e as
marcas distintivas”.
Essas considerações, por si só, situam a origem do Evangelho de Mateus
em uma tradição comunitária judeu-cristã que, como escreve O. Culmann, “se
esforça por romper, ainda que mantendo a continuidade com o Antigo Testamento,
as amarras que o prendiam ao judaísmo. Os centros de interesse, o tom
geral desse Evangelho, sugerem a existência de uma situação tensa”.
Os fatores de ordem política não são possivelmente estranhos ao texto.
A ocupação romana da Palestina torna naturalmente vivo o desejo do país
ocupado de ver sobrevir sua libertação e roga-se a Deus para intervir a favor
do povo, que Ele elegeu todos e do qual Eleée o soberano todo poderoso, e
que pode, como Ele o fez muitas vezes, ao longo da História, trazer o seu apoio
direto aos negócios dos homens.
Qual é a personalidade de Mateus? Digamos de passagem que não se
admite hoje que se traia de um companheiro de Jesus. A. Tricot o apresenta,
entretanto, assim em seu comentário da tradução do Novo Testamento em
1960: “Mateus, aliás, Levi, por seu trabalho publicano27 ou de fi scalização, era
empregado do escritório da Alfândega ou de portagem de Cafarnaum, quando
Jesus o chamou pata fazer dele um de seus discípulos”. É o que pensavam os
Padres da Igreja, como Orígenes, Jerônimo e Epifânio. Não é mais o que se cré
em nossos dias. Um ponto não contestado é que o autor é judeu; o vocabulário
é palestino, a redação é grega. O autor se dirige, escreve O. Culmann, “as pessoas
que, mesmo falando grego, conhecem os costumes judeus e a língua aramaica”.
Para os comentadores da Tradução Ecumênica, a origem desse Evangelho
parece ser a seguinte: “Ordinariamente, pensa-se que ele foi escrito na Síria,
pode ser em Antioquia [...], ou na Fenícia, porque nessas regiões vivia um gran-
26 - Os samaritanos nham o código religioso a Torá ou Pentateuco; eles esperavam a vinda do
Messias e eram a maior parte das observações do Judaísmo, mas eles nham edifi cado um templo
concorrente ao de Jerusalém
27 - Cobrador de rendimentos públicos, entre os romanos; Homem de negócio.
70
de número de judeus28 [...]. Pode-se entrever uma polémica contra o judaísmo
sinagogal ortodoxo dos fariseus, tal como se manifesta na assembleia sinagogal
de Jamina pelos anos 80. Nessas condições, numerosos são os autores que
datam o primeiro Evangelho pelos anos 80-90; pode ser um pouco mais cedo,
não se pode chegar a uma inteira certeza sobre o assunto.”
Em vista da impossibilidade de se conhecer precisamente o nome do
autor, é conveniente que nos contentemos com alguns traços delineados no
próprio Evangelho: o autor é reconhecido pela sua profi ssão. Versados nas
Escrituras e nas tradições judias, conhecendo, respeitando, mas interpelando
rudemente os chefes religiosos de seu povo, experimentado mestre na arte
de ensinar e de fazer compreender Jesus aos seus ouvintes, insistindo sempre
sobre as consequências práticas de ensinamento, ele corresponderá muito bem
à caracterização de um letrado judeu tornado cristão, um senhor da matéria
“que tira do seu tesouro coisas novas e velhas”, como Mateus evoca em 13:52.
Estamos bem longe do empregado do escritório de Cafarnaum, chamado Levi
por Marcos e Lucas, e transformado em um dos doze apóstolos.
Todos concordam em pensar que Mateus escreveu seu Evangelho a
partir de fontes comuns com Marcos e com Lucas. Mas sua narração vai diferir,
e sobre pontos essenciais, como nós veremos a seguir. E, portanto, Mateus
utilizou largamente o Evangelho de Marcos que não era discípulo de Jesus (O.
Culmann).
Mateus torna sérias liberdades com os textos. Constata-se isso no que
concerne ao Antigo Testamento, a propósito da genealogia de Jesus, colocada
no início de seu Evangelho. Ele insere em seu livro narrações, propriamente
falando, incríveis. É o qualifi cativo que emprega, em sua obra citada mais
adiante, R.P.Kannengiesser a respeito de um episódio da ressurreição de Jesus:
o da vigilância. Ele destaca a incerteza dessa história de vigilantes militares do
túmulo, “esses soldados pagãos” que “relatam o sucedido, não a seus superiores
hierárquicos, mas aos grandes sacerdotes que lhes pagam para contar mentiras”.
Ele acrescenta, entretanto: “É preciso abster-se de zombar, porque a interação de
Mateus é infi nitamente respeitável, e ele integra, à sua maneira, um dado antigo
da tradição oral à sua obra escrita. Mas sua mise en scène é digna de Jesus cristo
Superstar29.
Esse julgamento sobre Mateus emana, lembremo-nos, de um eminente
28 - Pergunta-se se a comunidade judeu-cristã de Mateus não poderia estar situada também em
Alexandria. O. Culmann cita esta hipótese, entre muitas outras.
29 - Edições de Cerf et Les Berges et les Mages.
71
teólogo, professor do Instituto Católico de Paris. Mateus dá em sua narração,
aos acontecimentos que acompanharam a morte de Jesus, um outro exemplo
de sua fantasia.
«Eis que o véu do santuário se rasgou em dois, alto a baixo; a terra
tremeu, fenderam-se as rochas, abriram-se os túmulos, os corpos de numerosos
santos ressuscitaram, saindo dos túmulos depois de sua ressurreição, eles entraram
na cidade santa e apareceram a um grande número de pessoas».
Esta passagem de Mateus (27:51-53) não tem seu correspondente nos
outros Evangelhos. É difícil imaginar como os corpos dos santos em questão
puderam ressuscitar depois da morte de Jesus (à véspera-do sábado, dizem os
Evangelhos), e sair de seus túmulos somente depois de suo ressurreição (o dia
seguinte ao sábado, segundo, as mesmas variações).
É, pode ser, em Mateus, que se encontra a inverossimilhança mais caracterizada
e menos discutível de todos os Evangelhos, que um de seus autores
tenha posto na boca do próprio Jesus. Ele relata assim, em 12:38-40, o espírito
do milagre de Jonas:
«Jesus está no meio dos escribas e dos fariseus que se dirigem a ele
nesses termos: “Mestre, nós queremos que você nos faça ver um milagre”.
Jesus lhes respondeu: «Geração má e adúltera (sic) que pede um prodígio.
Mas nenhum prodígio lhe será dado senão o do profeta Jonas. Porque assim
como esteve Jonas três dias e três noites no ventre do monstro, assim o fi lho
do Homem estará no seio da terra três dias e três noites...” (Texto da Tradução
Ecumênica).
Jesus anuncia portanto que fi cará enterrado três dias e três noites. Ora,
Mateus e com ele, Lucas e Marcos, situam a morte e a inumação de Jesus na
véspera do sábado, o que faz, certamente, considerar a sua permanência na terra
em três dias (três êmeras no texto grego). Mas nesse lapso de tempo não se
podem compreender mais do que duas noites e não três noites (treis nuktas no
texto grego).30
Os comentadores dos Evangelhos fazem muito frequentemente silêncio
diante desse episódio. No entanto, R. P. Roguet levanta a inverossimilhança, pois
ele nota que Jesus “não fi cou no túmulo” senão três dias (logo, um só completo)
e duas noites. Mas acrescenta ele.
30 - Em outra passagem do Evangelho, Mateus faz uma segunda menção desse episódio, mas sem
precisar o tempo (16:1-4). Sucede o mesmo em Lucas (11:29-32). Para Marcos, ver-se-á mais longe,
Jesus teria declarado que não será dado nenhum sinal por ele a esta geração (Marcos 8:11-12)
72
“A expressão é um clichê e não quer dizer outra coisa senão três dias”. É desgostante
que os comentadores tenham se limitado a usar tais argumentos, que
não querem nada dizer de positivo, quando seria tão satisfatório para o espírito
sugerir que tal enormidade pudesse provir do erro de um escriba!
Além dessas incertezas, o que caracteriza, antes de tudo, o Evangelho de
Mateus, é que ele é de uma comunidade judeu-cristã que infringe o desterro do
judaísmo, fi cando na linha do Antigo Testamento. Tem ele, sob ponto de vista
da história do judeu-cristianismo, uma importância considerável.
EVANGELHO SEGUNDO MARCOS
É o mais curto dos quatro Evangelhos. É também o mais antigo, mas
nem por isso ele é o livro de um Apóstolo: é, nada mais nada menos, que um
livro redigido por um discípulo de um apóstolo.
O. Culmann escreveu que não considerava Marcos um discípulo de Jesus.
Mas o autor faz notar para quem a atribuição deste Evangelho ao apóstolo
Marcos pode parecer suspeita, que “Mateus e Lucas não teriam utilizado este
Evangelho como eles o fi zeram, se não estivessem fundamentados efetivamente
sobre o ensinamento de um apóstolo!” Mas isto é um argumento não decisivo.
O. Culmann cita igualmente, como apoio da reserva, que ele junta às frequentes
citações do Novo Testamento, um certo “o João chamado Marcos”, mas essas
citações não contém a menção de um autor do Evangelho, e o texto de Marcos
não menciona o autor.
A pobreza das informações sobre esse ponto conduziram os comentadores
a tomar, como elementos de valor, pormenores, que parecem enredados,
tais como: sob o pretexto de que Marcos é o único evangelista a contar na
sua narração da Paixão o espírito de um jovem, tendo apenas um lençol como
vestimenta e que, detido, tira um lençol e foge nu (Marcos 14:51-52), alguns concluíram
que o jovem em questão poderia ser Marcos, “discípulo fi el que tenta
seguir o Mestre” (Tradução Ecumênica); para outros, pode-se ver aqui: “por
esta lembrança pessoal uma marca de autenticidade, numa assinatura anônima”,
“provando que ele foi testemunha ocular” (O. Culmann).
Para esse autor, “os numerosos volteios de frases corroboram a hipótese
73
segundo a qual o autor era um judeu de origem”, mas a presença de latinismos
pode sugerir que ele escreveu seu Evangelho em Roma. “Ele se endereça, aliás,
aos cristãos que não vivem na Palestina e toma cuidado em lhes explicar as
expressões aramaicas que emprega”.
Com efeito, a tradição quis ver em Marcos o companheiro de Pedro em
Roma, fundamentando-se no fi nal da primeira epístola de Pedro (se de fato este
é o seu autor). Pedro teria escrito aos destinatários da Epístola: “A comunidade
dos eleitos, que está em Babilônia, vos saúda assim como Marcos, meu fi lho”.
Babilônia “quer dizer provavelmente Roma”, lê-se nos comentários da Tradução
Ecumênica por onde se crê autorizado a deduzir que o Marcos que tinha
estado com Pedro em Roma seria o Evangelista... Foi um raciocínio desse tipo
que levou Papias, bispo de Hierápolis, pelo ano 150, a atribuir o Evangelho em
questão a um Marcos, que dizia ter sido “o intérprete de Pedro”, e que teria
sido também um colaborador de Paulo?
Nessa perspectiva, situar-se-ia a composição do Evangelho de Marcos
depois da morte de Pedro, portanto mais cedo, entre 65 e 70, para a Tradução
Ecumênica, cerca de 70 para O. Culmann.
O texto mesmo deixa aparecer indiscutivelmente um primeiro grande
defeito: ele é redigido sem o mínimo cuidado com a cronologia. Assim, Marcos
coloca no começo de sua narração (1:16-20) o episódio dos quatro pescadores
que Jesus convida a segui-lo, dizendo simplesmente: “Vocês, serão pescadores de
homens”, quando estes nem sequer o conheciam. O evangelista manifesta, além
disso, uma ausência completa de probabilidade.
Como disse R. P. Roguet, Marcos é um “escritor desajeitado”, o mais
incipiente de todos os evangelistas, ele não sabe compor bem uma narração e
o comentador apoia sua observação na citação de uma passagem, contando a
instituição dos doze apóstolos, da qual a tradução literal é a seguinte:
“E, tendo subido a montanha, chamou a si aqueles que Ele mesmo quis e
eles vieram para junto d’Ele. E escolheu doze para que andassem com Ele e para
os enviar a Pregar e ter o poder de expulsar os demônios. E Ele fez os doze e
impôs a Simão o nome de Pedro” (Marcos 3:13-16).
Para certos episódios, ele está em contradição em Mateus e com Lucas,
como lembramos anteriormente a propósito do prodígio de Jonas. Além disso,
a propósito dos milagres que Jesus oferece aos homens ao longo de sua missão,
Marcos conta (8:11-12) um episódio que não é acreditável.
74
“Os fariseus vieram e puseram-se a discutir com Jesus; para fazê-lo cair
numa armadilha, pediram-lhe um sinal do céu. Arrancando um profundo suspiro,
Jesus disse: “Por quê esta geração pede um sinal? Em verdade eu vos digo,
não será dado nenhum sinal a esta geração”. E deixando-os tornou a embarcar
e partiu para outra margem”.
É, sem dúvida, a afi rmação, vinda do próprio Jesus, de sua intenção de
não fazer nenhum ato que pudesse parecer sobrenatural. Também, os comentadores
da Tradução Ecumênica da Bíblia se admiram que Lucas declare que Jesus
não dará a não ser um sinal, o de Jonas (ver o Evangelho de Mateus), julgando
“paradoxal” que Marcos diga que “esta geração não terá nenhum sinal”, após,
frisam eles, “os milagres que o próprio Jesus apresenta como os sinais” (Lucas,
7:22 e 11:20).
A totalidade do Evangelho de Marcos é ofi cialmente reconhecida como
canônica. Nem por isso o fi nal de seu Evangelho (16:9-20) deixa de ser considerado
pelos autores modernos como uma obra justaposta: a Tradução Ecumênica
o assinala muito explicitamente.
Este fi nal não está contido nos dois mais antigos manuscritos completos
dos evangelhos, o “Codex Vaticanus” e o “Codex Sinaiticus”, que datam do
Século IV. O. Culmann escreveu a esse propósito: “Manuscritos gregos mais
recentes e certas versões juntaram, nessa parte, uma conclusão sobre as aparições
que não é de Marcos, tirada de outros Evangelhos”. Com efeito, as versões
justapostas desse fi nal são numerosas. Há nos textos, tanto uma versão longa
como uma versão curta (os dois foram reproduzidos na Tradução Ecumênica),
tanto a versão longa com um aditivo, como as duas versões.
R. P. Kannengiesser comenta assim este fi nal: “Devem ter sido suprimidos
os últimos versículos por ocasião da aceitação ofi cial (ou da edição vulgarizada)
de sua obra na comunidade que a tomava como garantia. Nem Mateus, nem
Lucas nem, a fortiori, João, conheceram a parte que falta. Todavia, a lacuna era
intolerável. Muito mais tarde, uma vez os escritos similares de Mateus, Lucas
e João postos em circulação, copilou-se uma digna conclusão de Marcos, recolhendo
elementos à direita e à esquerda nos outros evangelistas. Será fácil
identifi car as peças deste “enigma”; especifi cando Marcos, (16:9-20) ter-se-ia
uma ideia mais concreta da liberdade com que se tratou o gênero literário da
narração evangélica, até o limiar do Século II”.
Que confi ssão sem rodeios da existência de manipulações, por homens,
dos textos das Escrituras nos fornecem essas refl exões de um grande teólogo!
75
EVANGELHO SEGUNDO LUCAS
“Cronista” para O. Culmann, “Verdadeiro romancista” para R. P. Kannengiesser,
Lucas nos adverte em seu prólogo dirigido a Theófi lo que vai, por sua
vez, depois de outras que compuseram as narrações sobre Jesus, redigir um
relato sobre os mesmos fatos, utilizando essas informações de testemunhas
oculares – o que implica que ele não era uma delas - assim como aquelas provenientes
das predicações dos apóstolos. É, portanto, um trabalho metódico que
ele apresenta nestes termos:
“Visto que muitos empreenderam compor uma narração-dos acontecimentos
sucedidos entre nós, como foram transmitidos por aqueles que foram
desde o início testemunhas oculares, e que se tornaram os servidores da palavra,
me pareceu bom, a mim também, após ter cuidadosamente me informado de
tudo a partir das origens, escrever para ti uma narração ordenada, muito honorável
Theófi lo, a fi m de que tu possas constatar a solidez dos ensinamentos em
que tu foste instruído”.
Discerne-se desde as primeiras linhas tudo o que separa Lucas do “medíocre
escrivão” que é Marcos, do qual acabamos de evocar a obra. Seu Evangelho
é uma incontestável obra literária, escrita em um grego clássico sem barbarismos.
Lucas é um letrado pagão, convertido ao cristianismo. Sua orientação em
relação aos judeus é imediatamente aparente. Como sublinha O. Culmann, Lucas
exime-se de retornar os versículos mais judaicos de Marcos e põe em destaque
as palavras de Jesus contra a incredibilidade dos judeus e seus bons relacionamentos
com os samaritanos, que os judeus detestavam, ao passo que Mateus,
como se viu, recomendava, em nome de Jesus, aos apóstolos, fugir deles. Exemplo
surpreendente, entre muitos outros, pelo fato de que, fazendo Jesus dizer
o que convém às suas perspectivas pessoais, os evangelistas, sem dúvida, com
uma convicção muito sincera, nos dão as palavras de Jesus a versão adaptada ao
ponto de vista das comunidades às quais eles pertencem. Como negar diante
de semelhantes evidências, que os Evangelhos não são “escritos de combate” ou
“de circunstâncias” já evocadas? A comparação entre a maneira geral do Evangelho
de Lucas e do Evangelho de Mateus traz a esse respeito uma demonstração.
Quem é Lucas? Quiseram identifi cá-lo ao médico levado esse nome que
Paulo cita em algumas de suas epístolas. A Tradução Ecumênica observa que
“muitas encontraram confi rmação de profi ssão médica do autor do Evangelho
na precisão da descrição das doenças”. Esta apreciação é completamente exage76
rada. Lucas não dá “descrições” desta ordem propriamente dita “o vocabulário
que ele emprega é aquele de todo homem culto de seu tempo”. Um certo Lucas
foi companheiro de viagem de Paulo. É a mesma personagem? O. Culmann
assim pensa.
A data do Evangelho de São Lucas pode ser estabelecida em função de
diversos fatores: Lucas se serviu do Evangelho de Marcos, e este do de Mateus.
Parece, lê-se na Tradução Ecumênico, que ele teria conhecido o sítio e a ruína de
Jerusalém pelas armas de Tito no ano 70. O Evangelho seria, portanto, posterior
a essa data. As críticas atuais situam comumente sua redação pelos anos 80-90,
mas muitos lhe atribuem uma data ainda mais antiga.
As diversas narrações de Lucas apresentam diferenças importantes com
as de seus predecessores. Demos acima um apanhado delas. A Tradução Ecumênica,
assinala páginas 181 e seguintes. O. Culmann cita no livro O Novo Testamento,
p. 18, narrações do Evangelho de Lucas que não são reencontradas em
outras partes. E não se trata de pormenores.
Os relatos da infância de Jesus do Evangelho de Lucas lhe são próprias.
Mateus conta diferentemente de Lucas a infância de Jesus. Marcos não diz uma
palavra a respeito.
Mateus e Lucas dão diferentes genealogias de Jesus: a contradição é tão
importante, a inverossimilhança é tão grande do ponto de vista científi co, que
um capítulo especial será consagrado aqui a esse respeito. É explicável que Mateus,
dirigindo-se aos judeus, faça iniciar a genealogia em Abraão e a faça passar
por David, e que Lucas, pagão convertido, tenha o cuidado de remontar mais
alto. Ver-se-á que, a partir de Davi, as duas genealogias são contraditórias.
A missão de Jesus é contada diferentemente em diversos pontos por
Lucas, Mateus e Marcos.
Um acontecimento de importância tão capital para os cristãos, como
a instituição da Eucaristia, é sujeita a variantes entre Lucas e os dois outros
Evangelhos (Não é possível se fazer a comparação com João, pois ele não fala da
instituição da Eucaristia por ocasião da Ceia precedente à Paixão.). R. P. Roguet
nota em seu livro, Iniciação ao Evangelho (p. 75), que as palavras pelas quais a
Eucaristia é instituída nos são relatadas por Lucas (22:19-24) numa forma muito
diferente daquelas que encontramos em Mateus (26:26-29) e em Marcos (1:22-
24), que são quase idênticas. “Ao contrário, a fórmula transmitida por Lucas é
muito próxima daquela que São Paulo evoca” (1°Epístola aos Coríntios, 11:23-25).
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Lucas, como vimos, emite sobre a Ascensão de Jesus, em seu Evangelho,
uma versão em contradição com a dos Atos dos Apóstolos, dos quais ele é
o autor reconhecido, e que faz parte integrante do Novo Testamento. Em seu
Evangelho, ele situa a ascensão do dia de Páscoa e, nos Atos, quarenta dias mais
tarde. Sabe-se a que curiosos comentários esta contradição conduziu os exegetas
cristãos.
Mas os comentadores que têm a preocupação da objetividade são forçados
a reconhecer, como aqueles da Tradução Ecumênica da Bíblia sob um plano
muito geral, que, para Lucas, “o cuidado principal não é descrever os fatos em
sua exatidão material...” Comparando as narrações dos Atos dos Apóstolos,
obra do mesmo Lucas, com as narrações de fatos análogos de Paulo sobre
Jesus ressuscitado, R. P. Kannengiesser dá sobre Lucas esta opinião: “Lucas é o
mais sensível e o mais literário dos quatro evangelistas; ele apresenta todas as
qualidades de um verdadeiro romancista”.
EVANGELHO SEGUNDO JOÃO
O Evangelho de João é radicalmente diferente dos três outros, a tal
ponto que, no seu livro Iniciação ao Evangelho, R. P. Roguet, depois de haver
comentado os primeiros, dá de improviso, do quarto Evangelho, uma imagem
expressiva: “um outro mundo”. É, com efeito, um livro muito à parte: diferença
na ordenação e na escolha dos assuntos, das narrações, dos discursos; diferenças
de estilo, diferenças geográfi cas e cronológicas e, até, diferenças nas perspectivas
teológicas (O. Culmann).
As palavras de Jesus são, portanto, diversamente relatadas por João e
pelos outros Evangelistas: R. P. Roguet faz observar, a esse propósito, que, enquanto
os sinóticos relatam as palavras de Jesus em um estilo direto, muito mais
próximo do estilo oral, “em João, tudo refl ete a meditação, a tal ponto que nós
podemos nos perguntar, às vezes, se é ainda Jesus que fala ou, então, de seus
propósitos não são prolongados insensivelmente pelas refl exões do Evangelista”.
Qual é o autor? A questão é muito debatida, as opiniões mais diversas
são emitidas a esse respeito.
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A. Tricot e R. p. Roguet estão com aqueles a quem não surge a menor
dúvida: O Evangelho de João é obra de uma testemunha ocular; o autor é João,
fi lho de Zebedeu e irmão de Jacó, o apóstolo sobre o qual tantos detalhes são
conhecidos e expostos nos manuais de vulgarização. A iconografi a popular o
coloca mantendo-se perto de Jesus como na Ceia precedente à Paixão. Quem
imaginaria que o Evangelho de João não seja obra desse João Apóstolo, cuja
fi gura é tão comumente difundida?
A redação muito tardia desse quarto Evangelho não é argumento formal
contra essa tomada de posição. A versão defi nitiva deve ter sido redigida em
fi ns do 1° Século. Situar a redação sessenta anos depois de Jesus será compatível
com a existência de um apóstolo muito jovem no tempo de Jesus e que teria
vivido perto de um século.
R. P. Kannengiesser, em seu estudo da Ressurreição, chega à conclusão
de que a nenhum autor do Novo Testamento, além de Paulo, se pode atribuir
a qualidade de haver sido uma testemunha ocular da Ressurreição de Jesus.
Todavia, João relata a aparição aos Apóstolos, na qual ele estaria presente e que
estavam reunidos, com exceção de Thomas (20:19-24), oito dias mais tarde, com
todos os apóstolos (20:25-29).
O. Culmann, em seu livro O Novo Testamento, não toma partido.
A Tradução Ecumênica da Bíblia precisa que a maioria das críticas não
exclui a hipótese de uma redação pelo Apóstolo João, cuja eventualidade não
pode ser, apesar de tudo, absolutamente excluída. Mas tudo leva a crer que o
texto atualmente divulgado teve vários autores: “É provável que o Evangelho,
tal como nós o possuímos tenha sido publicado pelos discípulos do autor que
juntaram o Capítulo 21 e, sem dúvida, algumas anotações (assim 4:2 e talvez 4:1;
4:44; 7:37b; 11:2; 19:35). Quanto à narração da mulher adúltera (7:53-8:11), todos
estão de acordo em reconhecer que se trata de um trecho de origem desconhecida,
inserido mais tarde (mas que pertence, entretanto, à Escritura Canônica)”.
A passagem 19:35 aparece como uma “ratifi cação” de “testemunha ocular” (O.
Culmann), a única explícita de todo o Evangelho de João, mas os comentadores
pensam que ela foi, sem dúvida, acrescentada.
O. Cúlmann pensa que as adições posteriores são manifestas neste Evangelho:
assim, o Capítulo 21 seria obra de um “discípulo que teria dado retoques
também no corpo do Evangelho”.
Sem evocar todas as outras hipóteses feitas pelos exegetas, as únicas
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observações provenientes de autores cristãos mais eminentes, aqui apresentados
sobre a questão do autor do quarto Evangelho, mostram que se encontra em
plena confusão a propósito do apadrinhamento.
O valor histórico das narrações de João foi muito contestado. As discordâncias
com os outros três Evangelhos são fl agrantes. O. Culmann dá-lhes explicação.
Ele reconhece em João perspectivas teológicas diferentes das dos outros
evangelistas. Essa visão “guia a escolha das interpretações da Logía31 apresentadas,
da maneira pela qual elas são reproduzidas... Assim, o autor desenvolve-lhes
frequentemente, as linhas, fazendo o Jesus histórico dizer o que o Espírito Santo
mesmo lhe revelou”. Tal é, para este exegeta, a razão das discordâncias.
De certo, conceber-se-ia que João, escrevendo depois dos outros evangelistas,
teria podido escolher certas narrações apropriadas para melhor ilustrar
suas teses, e não deveria causar admiração por não se encontrar em João tudo
o que as outras narrações contém. A Tradução Ecumênica destaca um certo
número de casos desse tipo (2:282). Mas o que choca muito mais são certas
lacunas. Algumas parecem apenas críveis, como aquela da narração da instituição
da Eucaristia. Como poderemos imaginar que um episódio também primordial
para o cristianismo, que vai se tornar o pilar de sua liturgia - a missa - não seja
evocada por João, o evangelista, meditativo por excelência? Ora, ele se contenta
em descrever somente, na narração da ceia que precede a Paixão, a lavagem dos
pés dos discípulos, a anunciação da traição de Judas e a renegação de Pedro.
Há, ao inverso, narrações próprias de João e que faltam nos outros
três autores. A Tradição Ecumênica as menciona (p. 283). Aí, ainda, se poderia
arguir32 que os três autores teriam podido não discernir33, nesses episódios,
uma importância que João teria destacado. Mas como não ser surpreendido
por encontrarem João numa narração do aparecimento de Jesus ressuscitado a
seus discípulos, à margem do Lago de Tiberíades (João 2I:l-4), que não é senão
a reprodução, com numerosos detalhes acrescidos, da pesca miraculosa apresentada
por Lucas (5:1-11) como um episodio ocorrido durante a vida de Jesus?
Nessa narração, Lucas faz a alusão à presença do apóstolo João que, seguindo
a tradição, seria o evangelista. Da narração do Evangelho de João, fazendo parte
desse Capítulo 21, concorda-se em dizer que é uma adição posterior; imagina-se
facilmente que a citação do nome de João, na narração de Lucas, teria podido
levar a incluí-la artifi cialmente, no quarto Evangelho: a necessidade, por isso,
31 - Palavras
32 - Cri car, censurar, condenar.
33 - Ver dis ntamente; discriminar, dis nguir, conhecer; Avaliar bem; apreciar, medir;
Estabelecer diferença entre; dis nguir, separar; Apreciar, julgar.
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de transformar uma narração de Jesus vivo em uma narração póstuma, mesmo
forçada, não deteve o manipulador do texto evangélico.
Uma outra divergência considerável entre o Evangelho de João e os
outros três é a duração da missão de Jesus. Marcos, Mateus e Lucas a fi xam em
um ano. Para João, ela se estende a mais de dois anos. O Culmann nota o fato.
A Tradução Ecumênica exprime-se assim a esse respeito:
“Enquanto os sinóticos evocam um longo período, Galileu, seguido de
uma marcha mais ou menos prolongada pela Judéia, João, ao contrário, relata
frequentes mudanças de uma região à outra e considera uma presença de longa
duração na Judéia e, sobretudo, Jerusalém (1:19-51; 2:13-3,36; 5:147; 14:20-31). Ele
menciona diversas celebrações pascoais (2:13; 5:1; 6:4; 11:55) e sugere assim um
ministério de mais de dois anos”.
Então, entre Marcos, Mateus, Lucas e João, em quem é preciso acreditar?
A ORIGEM DOS EVANGELHOS
O apanhado geral que demos dos Evangelhos, e que emerge do exame
crítico dos textos, leva a adquirir a noção de uma literatura “descosida
(desconexa), cujo plano se ressente de continuidade” e “cujas contradições parecem
insuperáveis”, para retomar os termos do julgamento exarado pelos
comentadores da Tradução Ecumênica da Bíblia, a cuja autoridade importa fazer
referência, tão graves são as consequências das apreciações sobre esse assunto.
Viu-se que noções sobre a história religiosa contemporânea do nascimento dos
Evangelhos poderiam explicar certos caracteres dessa literatura desconcertante
para o leitor que refl ete. Mas é preciso ir mais longe e pesquisar o que podem
nos apresentar os trabalhos publicados na época moderna sobre as fontes que
os Evangelistas buscaram, para redigir seus textos; é igualmente interessante,
examinar se a história dos textos depois do seu estabelecimento é susceptível
de explicar certos aspectos que eles apresentam em nossos dias.
O problema das fontes foi abordado de modo muito simples na época
dos Padres da Igreja. Nos primeiros séculos da era cristã, a fonte não poderia
ser senão o Evangelho que os manuscritos completos apresentam como o
primeiro, quer dizer o Evangelho de Mateus. A questão das fontes se colocava